Fica difícil, num primeiro momento, que se leve a sério essa história. Isso porque ela transpira literatura e parece ser tão real que poderia não ter acontecido na realidade, que em geral é ficcional demais. Entretanto, ela está em biografias do escritor, nos levando a acreditar. Franz Kafka foi um dos escritores mais influentes do Século XX. Nasceu em Praga, na República Tcheca, em 1883. E teria vivido essa experiência única cerca de um ano antes de falecer, o que veio a ocorrer em Klosterneuburg, na Áustria, em 1924. Mas o fato se deu em Berlim, na Alemanha.
Viver na capital alemã foi um sonho que ele demorou muito para realizar. Com quase 40 anos conseguiu isso, mas a cidade que ele idealizava vivia um período de total decadência. O que lá ocorria – este tempo foi entre as duas guerras mundiais – não era para deixar nem mesmo quem a admirava ficar feliz com o que via. O centro vivia repleto de mendigos; judeus, como ele, eram ameaçados e perseguidos. Tudo ia de mal a pior na economia, nas relações sociais. Até os sonhos pareciam ter sido roubados. Algo assim como o Brasil, de Bolsonaro, exceto pelos judeus, que no caso brasileiro são substituídos por indígenas, artistas, negros, esquerdistas, mulheres, professores, estudantes, população LGBTQIA+, cientistas. Paro por aqui, porque senão vou invejar a escolha de Kafka, assim como há muito invejo seu talento.
Quando afinal ele conseguiu mudar-se para Berlim, com sua namorada Dora Dymant, instalou-se em uma pensão afastada. E, quando saiam para dar caminhadas, a preferência era por parques, como o existente em seu bairro, o Steglitz, que fica no sudoeste da cidade. Em uma dessas ocasiões, viram uma menina que chorava muito. Quando a abordaram, ela explicou que havia perdido sua única boneca. Foi então que o escritor, para consolar a criança, disse que a boneca não estava perdida e sim viajando. “Como você sabe?” – teria questionado a menina. E ele respondeu, categórico: “Porque ela escreveu uma carta contando”. “Cadê a carta?” – perguntou a menina. A saída foi dizer que ele era um carteiro e que ela estava na casa deles, prometendo trazê-la no dia seguinte.
Naquela noite ele escreveu aquela que seria a primeira de muitas cartas, que “chegaram” durante três semanas. Em cada uma delas a boneca contava alguma peripécia vivida nos mais diversos lugares do mundo. Eram aventuras que prendiam a atenção da menina e estimulavam sua imaginação. Depois de algum tempo, Kafka comprou uma outra boneca e deu para a menina, dizendo que ela estava de volta. Mas foi questionado pelo fato de não ser a mesma, dela estar bem diferente. O que foi, por uma última carta, esclarecido: ela estava diferente porque as viagens transformam quem as faz. A garota foi embora, feliz com o presente, que não era algo novo e sim o antigo amor, agora renovado.
Ele não durou muito depois disso. Poucos meses depois foi vitimado por uma tuberculose laríngea. Pessoalmente, nunca escreveu sobre esse encontro no parque e o que ocorreu em função dele. Foi Dora que fez o relato oral. Segundo ela, Kafka se dedicou com tal seriedade à produção das cartas quanto o que fazia com seus romances e contos. Também foi ela que manteve em seu poder originais produzidos por Kafka, após sua morte. Isso apesar de ele ter solicitado que tudo o que escrevera fosse queimado, o que ela não fez. Ao contrário, manteve tudo consigo até que os nazistas da Gestapo confiscaram, em 1933.
O homem que produzira obras primas como A Metamorfose e O Processo, mostrava um lado meigo pouco conhecido. Esse outro surpreendente aspecto seu foi revelado por livro escrito pelo premiado catalão Jordi Sierra i Fabra: Kafka e a Boneca Viajante, baseado em relatos, como eu disse antes. Paul Auster também reconta o episódio, mas através de um conto. Nas narrativas, que procuraram ser fiéis, algo totalmente diferente dos textos surreais, duros e claustrofóbicos, que mostravam lados sombrios da nossa humanidade. Esses escritos, dedicados à pequena Elsi – era esse o nome dela –, não tinham nada das nossas tantas angústias existenciais, tais como o medo, a culpa e a vergonha.
Um estudioso da obra de Kafka chamado Klaus Wagenbach procurou durante anos pela menina, sem obter sucesso. Sem ela ser encontrada, os originais das cartas – que não se sabe se teria guardado – também não o foram. Então, Sierra teve que inventar novas versões das supostas cartas, imaginando também um final para essa história maravilhosa. Um Kafka não kafkiano, mas que termina sendo incluído indiretamente na biografia deste que ocupa lugar entre os maiores gênios da literatura universal.
23.10.2022

O bônus de hoje é um raro clipe da banda carioca Inimigos do Rei, gravado no ano de 1989. A música é Uma Barata Chamada Kafka.
Esse blog recomenda muito que seus leitores conheçam o site da Rede Estação Democracia. Acesso através do link abaixo.
Se você gostou desta crônica ou de outras das nossas postagens, ajude a manter este blog em atividade, com contribuições.
Elas podem ser únicas, mensais ou anuais.
Selecione sua opção e confirme no botão abaixo.
Faça uma doação mensal
Faça uma doação anual
Escolha um valor
Ou insira uma quantia personalizada
Agradecemos sua contribuição.
Agradecemos sua contribuição.
Agradecemos sua contribuição.
Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmente(272 páginas – R$ 22,88)
Esta é a história de Josef K. Ele enfrenta um estranho processo e luta para descobrir por que o acusam, por quem é acusado e que lei ampara tal acusação, sem conseguir entender o que está de fato acontecendo. Trata-se da banalização de uma violência irracional. E ele se defronta todo o tempo com a impossibilidade de escolher um caminho que seja sensato ou lógico.
Basta clicar sobre uma das imagem das capas acima para ser encaminhado para a possibilidade de compra. Fazendo isso através de um desses links, o blog será comissionado.
💜 English Please 🙏🏿
…💛💚💙…
CurtirCurtir
Infelizmente eu não domino o idioma.
CurtirCurtido por 1 pessoa