ESPOSAS À VENDA

Por mais absurdo que possa parecer, esse hábito não era incomum, em especial no século XVIII. Para ser mais preciso, existe documentação sobre ocorrências ainda no século XIV e as mais recentes já no século XIX, só que essas primeiras e as últimas em muito menor número. De qualquer forma, isso mostra o quanto perdurou tal prática. Mas o fato não acontecia em países subdesenvolvidos, escondidos em algum canto “pouco civilizado” do mundo. Era na Inglaterra e há registros de muitos casos, sendo eles aceitos pela sociedade na época, mesmo vez por outra tendo acontecido alguns problemas. Estou me referindo à venda de esposas no mercado público. Algo que é muito mais do que vergonhoso, chegando a ser degradante. Prova cabal da coisificação da mulher, numa sociedade machista.

Isso acontecia em período no qual a possibilidade do divórcio ainda não tinha sido contemplada pela legislação. A absurda noção de propriedade permitia esse comércio. Assim, homens que estivessem insatisfeitos com suas esposas, as levavam num cabresto até o mercado e realizavam uma espécie de leilão. Para tanto, citavam em voz alta para os possíveis interessados o peso das mulheres e descreviam suas maiores virtudes. Em algumas oportunidades, crianças iam juntas, numa venda casada. O ajuste financeiro era feito na mesma hora, sendo eventualmente o valor acertado complementado pela transferência de bens, na maior parte das vezes boa quantidade de bebidas alcoólicas ou mesmo algum animal. E existiram casos de interessados que compravam e revendiam esposas, como atravessadores, buscando lucro.

A lei do casamento na Inglaterra data de 1753. Antes disso, bastava que duas pessoas se considerassem casadas e essa situação era tida como um fato incontestável. Mas a complexidade das relações matrimoniais, além da questão patrimonial disso decorrente, passou a exigir um tipo de ordenamento legal. Entretanto, mesmo antes dele ser instituído, eventual interesse em dissolução, fosse ele unilateral ou mútuo, era algo bem mais complicado de ser feito. Na verdade, só os mais ricos tinham acesso a isso, pois dependia de um processo aberto perante tribunal eclesiástico. Nesses casos pediam a separação de corpos – o termo em latim era divortium a mensa et thoro, literalmente “separação de mesa e cama” –, mas se fazia necessário provar adultério ou tratamento cruel, não sendo a nenhum dos dois cônjuges separados permitida uma nova relação oficial posterior. Então, entre as classes mais pobres, bem como entre os abastados que desejam uma outra união posterior, restava a compra e a venda. A alternativa era o simples abandono, que na verdade ocorria em muito maior número. De qualquer forma, o processo vexatório que acontecia nos mercados permitia um rearranjo que, em muitas das ocasiões, era inclusive do interesse de esposas infelizes no seu casamento – o que, ouso acreditar, a maioria delas era. Se bem que a possibilidade de estarem elas sendo conduzidas para outra infelicidade era imensa.

A mulher na sociedade sempre esteve historicamente submetida ao poder patriarcal primeiro e ao marital depois de “transferida a posse” através do casamento. As vozes masculinas, repletas de poder e vontade, submetiam as femininas. Convêm lembrar que o vocábulo família da língua portuguesa tem origem no latim “famulus”, cuja tradução literal seria “escravo doméstico” ou “atendente”. Dentro desta estrutura imposta, o poder para ser exercido se assenta em dois pilares básicos: as mulheres ocupam sempre hierarquia inferior aos homens; e os jovens são subordinados hierarquicamente aos mais velhos. Isso vem sendo enfrentado e está bem diferente hoje em dia, comparado ao que já significou no passado. Mas ainda muito longe de ser uma questão resolvida e superada.

30.09.2020

As esposas eram oferecidas como mercadoria, no mercado

Bônus de hoje: música Eu Sou Problema Meu, de Clarice Falcão.

O LETAL MORTE BRANCA

Um homem de apenas 1m52cm e porte físico de aparência frágil foi o mais preciso franco atirador que se tem notícia na história. Simo Hayha nascera em uma pequena localidade chamada Rautjarvi, que atualmente tem cerca de quatro mil habitantes, na província finlandesa da Carélia do Sul. A família de camponeses era luterana e vivia do plantio de cevada e da caça. Essa necessidade, por questão de sobrevivência, tornou o jovem exímio atirador. Tal habilidade foi depois aprimorada em trajetória como atirador esportivo, até que ele terminou engajado no exército de seu país, justamente em função do conflito que terminou por torná-lo uma verdadeira lenda. Agindo sozinho, durante a guerra entre Finlândia e Rússia, ele foi responsável direto pela morte de 545 soldados inimigos. Ou seja, se além de matar esse número absurdo de comunistas ele também os tivesse torturado antes, provavelmente desbancaria o coronel Brilhante Ustra da posição de maior ídolo de JB.

Este confronto ficou conhecido como Guerra de Inverno, tendo sido travado entre 30 de novembro de 1939 e 13 de março de 1940 – como esse foi um ano bissexto, durou exatos 105 dias. Esse curto espaço de tempo torna ainda mais significativo o feito de Simo, que lutou por 98 deles e teria então abatido 5,56 inimigos a cada 24 horas, em média. Mais de um por hora, uma vez que lá a luz do dia, durante a estação mais fria, perdura apenas por cerca de cinco horas. Agindo sempre bem distante dos demais soldados que resistiam à tentativa de invasão russa, ele se camuflava com roupas brancas e se enterrava parcialmente na neve. Muito resistente, conseguia ficar imóvel em condições adversas severas, esperando o exato momento de, com um único e certeiro disparo, acrescentar novo número à relação de suas vítimas. Essa invisibilidade e a letalidade sem igual lhe renderam o apelido de Morte Branca – ou Belaya Smert, em russo transliterado –, que foi dado pelo exército inimigo. As temperaturas por ele enfrentadas variavam entre -20 e -40 graus centígrados, durante as operações.

A Finlândia fez parte da Suécia por cerca de 700 anos. Depois acabou incorporada ao território russo, em 1809, tendo assim permanecido até 1917. Quando da Revolução Russa, aproveitaram para declarar sua independência, em 6 de dezembro daquele mesmo ano. Uma breve guerra civil chegou a acontecer, entre forças favoráveis e contrárias à iniciativa. Mas Lênin aceitou a independência do território vizinho, assinando declaração nesse sentido em março de 1918. Entretanto, anos mais tarde, quando a ameaça alemã se tornou uma realidade para os russos, eles decidiram ocupar outra vez o território finlandês, por razões estratégicas de defesa contra Hitler. Como não tiveram permissão para implantar bases suas pacificamente, isso desencadeou o conflito.

A gigantesca União Soviética não esperava encontrar resistência alguma por parte da pequena Finlândia. Mas não foi o que aconteceu. Seus 450 mil homens, centenas de tanques e aeronaves de combate rumaram com objetivo de formar posterior cinturão contra os alemães, desconhecendo a alta dificuldade do terreno muito acidentado, com densas florestas, lagos e pântanos. As estreitas vias de acesso ajudavam as forças de defesa, favorecendo ações quase de guerrilha. Nesse cenário, os invasores começaram a cair às centenas, diante da bravura das linhas de defesa. Lá estava também Simo e ele usava uma arma própria, que adquirira anos antes: um fuzil SAKO M28/30, modelo antigo, porém de reconhecida precisão e estabilidade. Sem luneta, ele tinha sistema de ferrolho, cada projétil tendo que ser extraído manualmente.

Em 6 de março de 1940, apenas uma semana antes da assinatura do tratado de paz que pôs fim à guerra, um infante russo finalmente conseguiu divisar e atingir Morte Branca, com uma bala explosiva que acertou o lado esquerdo do seu rosto, destruindo mandíbula e vários dentes. Posto de bruços, para não se afogar com o próprio sangue, foi levado para Helsinki, onde ficou desacordado por sete dias. Um jornal chegou a publicar seu obituário. Mas salvaram sua vida, após o paciente ter enfrentado 14 meses de internação e passado por 26 cirurgias. Nunca se vangloriou dos seus feitos, preferindo sempre dizer que apenas fez o que precisou ser feito. Tornou-se um pacato fazendeiro e faleceu com 96 anos, em abril de 2002.

28.09.2020

Simo Hayha, o Morte Branca

Bônus: um exemplo da moderna música popular finlandesa, cantada por Jenni Vartiainen. O título Missä Muruseni On pode ser traduzido livremente para Cadê Meu Querido. Mas muruseni também significa migalha.