QUANDO SE PERDE A ALMA

Para quem anda sentindo o coração apertado e a alma pesada, nesses dias difíceis pelos quais todos estamos passando, ver um filme que foge bastante do lugar comum pode ser um ótimo modo de passar o tempo sem abrir mão de uma necessária reflexão. Ele aborda angústias humanas sugerindo uma solução realmente surreal. Almas à Venda (Cold Souls – 2009), dirigido pela francesa Sophie Barthes, propõe nos seus primeiros minutos uma saída radical para nossos problemas: extirpá-los junto com nossas almas. E o procedimento para tanto é bastante simples, bastando ingressar numa máquina que a remove, sem dificuldades.

Difícil é sair imune do processo de acompanhar o desempenho do ator Paul Giamatti, que interpreta a si mesmo no filme. Em preparação para a estreia da peça Tio Vanya, baseada em texto clássico de Anton Tchecov, ele entra em crise e não consegue explorar todo seu potencial criativo. Melancólico e emocionalmente instável, o ator começa a se desesperar com a proximidade da estreia da montagem. Assim, resolve buscar essa alternativa extrema, ao ser informado da sua existência, através de anúncio em revista que chega até suas mãos. Só que, do mesmo modo que na quase totalidade dos apelos publicitários aos quais estamos expostos diariamente, nada sobre as consequências está explicitado no texto. E essas vão se revelando complexas, no decorrer da história.

Ao mesmo tempo em que um grande número de pessoas se submete a abrir mão de suas almas, existe um promissor mercado de interessados em adquirir as que são descartadas. O que incentiva o surgimento de uma espécie de mercado negro dessa essência humana. Então, o que se acompanha é algo semelhante ao tráfico de drogas, inclusive com a existência de “mulas”, que aceitam transportar o produto para outros locais, onde há compradores potenciais. Outra coisa, que também não havia sido admitida na publicidade, são os efeitos colaterais. E eles existem, atingindo a atividade sexual, a vida em sociedade e, o que no caso do ator em questão ganha um circunstancial maior significado, o talento artístico.

Essa situação se torna um “caldo” muito apropriado para que se faça um passeio, levado por uma ironia nem sempre fina, por uma série de alegorias e outro tanto de metáforas. Agora, que fique claro: apesar da diretora residir em Nova Iorque há bom tempo, ela é europeia. Então o filme não é de ação, nada tem de norte-americano, inexistem cenas de perseguições no trânsito e tiroteios. Chega a ser um tanto arrastado, em alguns momentos, segundo a opinião de críticos e amantes de aventuras cheias de efeitos especiais. Mas, como pensar não deve – ou não deveria – fazer mal a ninguém, pode ele ser um belo exercício. Nem que seja pela sua inegável excentricidade.

Importante destacar que a fotografia de Andrij Parkeh é excelente. E que o filme equilibra um humor carregado de sarcasmo, com dose exata de dramaticidade. O contexto histórico onde ele se enquadra é bem delineado, do mesmo modo que os aspectos econômico e político. O enredo acontece num mundo globalizado e dominado pela necessidade de a tudo ser atribuído um valor. A mercantilização deve ser total, e a liquidez buscada a qualquer preço. Não importa se nos referimos a automóveis, ações, propriedades ou se estão em questão pessoas, sentimentos e mesmo a alma humana. Nisso reside a recomendação de assistir. Talvez a gente aprenda um pouco e encontre um modo de fugir disso.

08.09.2020

Paul Giamatti representa a si mesmo no filme

Este é o trailer do filme Almas à Venda, de Sophie Barthes.