O DIA EM QUE A MAIRA CHEGOU

A memória mais antiga que guardo de mim mesmo é do dia do nascimento da minha sobrinha Maira. Foi pouco antes dos meus quatro anos e fui levado ao hospital da cidade de Bom Jesus, onde se morava, para ver minha irmã Marília, que havia dado à luz. Ela tem 14 anos mais do que eu, que fui o que chamavam de “temporão”. Portanto, estava sendo mãe ainda jovem. Eu era muito apegado a ela e lembro bem de ter pedido para subir na cama e deitar ao seu lado. Não tinham ainda me ensinado que a gente poderia até mesmo chorar de felicidade, sem problema algum. Assim, eu não sabia o que fazer e só me ocorreu aquele pedido estranho. Fiquei lá, abraçado sob as cobertas, embevecido com minha primeira experiência sobre o surgimento da vida. A magia tinha uma carinha bonita e estava num berço ao lado.

Claro que com a chegada dela eu perdi algumas das mordomias que tinha antes e resmungava um pouco por isso. Mas nunca com sinceridade e sim para marcar presença, para não correr o risco inexistente de ser esquecido e trocado. Terminamos nos afastando um pouco, apenas alguns anos depois, quando meu pai aposentado levou o restante da família para morar em outra cidade. A irmã, o cunhado e a sobrinha ficaram mais distantes – não o querer bem –, junto com os outros dois que chegaram mais tarde, o Luciano e a Mirna, que se tornou minha afilhada. Amores distintos, mas todos importantes.

Muito se fala sobre como uma criança deve ser apresentada às perdas que a morte representa, o que sem dúvida é de grande relevância. Mas acho que li muito menos sobre como pode ser surpreendente para ela a vida que se renova. Claro que hoje em dia, quase seis décadas depois, existe muito mais informação disponível e se pode passar por momentos decisivos na vida com orientação e cuidados maiores. A psicologia exerce um papel fundamental, que precisa ser valorizado. E, sem dúvida, o melhor enfrentamento de qualquer trauma – o que não foi o meu caso, podem acreditar –, talvez seja mesmo evitar que ele aconteça.

Contar para uma criança sobre a perda definitiva de alguém com quem ela convivia, requer certos cuidados. Não é recomendável, por exemplo, recorrer a alguns subterfúgios que só servem para deixá-la mais confusa e insegura. Nada de dizer que a vovó foi morar com Deus, porque ele a amava e queria por perto. Como assim? Ela também amava a vovó e não queria deixar de estar com ela. E ninguém vira estrelinha ou vai voltar em breve. O correto é tentar uma linguagem que ela compreenda, o que depende de cada faixa etária e contexto, explicando que a vida tem um ciclo, um tempo. Que existem acontecimentos como doenças, que pessoas e animais de estimação podem vir a enfrentar; e quando isso acontece, nem sempre fazer todo o possível é o suficiente. Que mesmo distante fisicamente, ela seguirá recebendo sentimentos de carinho e afeto daqueles que ficaram. E que ela, a criança, continuará sendo protegida e amada.

Quando da vinda de outra criança, convêm que os pais contem tão logo a gravidez se confirme. Porque o correto é que ela, que já estava lá, também participe de todas as etapas desta mudança que vai ocorrer na família. Afinal, ela é parte envolvida e o irmão ou irmã mais novo que virá vai afetar não apenas a vida dos adultos. Mas nada de ir antecipando “problemas”, como falar que ela vai ter que dividir colos e brinquedos. A não ser que você faça questão de ensinar que uma ameaça se aproxima. Melhor dizer que será alguém com quem poderá brincar; alguém para ensinar tudo o que já sabe; que os pais nunca vão deixar de amá-la; que será divertido ter duas festas de aniversário por ano; que cuidados iguais aos de agora foram tomados quando a espera era por ela.

Uma criança é sempre uma presença iluminada. Eu era muito pequeno para racionalizar isso, mas não para sentir. Aquele primeiro encontro entre a Maira e eu, na década de 1960, ocorreu num dia 31 de outubro, como hoje. Atualmente um oceano nos separa. Mas isso não quer dizer absolutamente nada, quando o afeto persiste e segue sendo verdadeiro.

31.10.2020

Foto ilustrativa, que denota acolhimento

No bônus musical a música Espatódea, de Nando Reis. Ele compôs em homenagem ao nascimento da sua quarta filha, Zoé. Passados 19 anos, na mesma data, nascia sua segunda neta, Gal.

BETINHO, O GRANDE

Chamar ele assim, com seu nome no diminutivo, só se explica sendo uma forma carinhosa de tratamento. Fosse pelo seu modo de agir, sua dimensão como ser humano, não seria Betinho, mas Betão. Como zagueiro que se preza, da várzea, no barro. Mas ele atuava em outros campos e num jogo bem mais complicado de vencer: combatia a desigualdade social. Foi ele, Herbert José de Sousa, o idealizador da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, movimento criado para lutar em favor dos pobres e excluídos do nosso país.

Mineiro de Bocaiúva, Betinho tinha dois irmãos que também ganharam notoriedade ao longo da vida: o cartunista Henfil e o músico Chico Mário. De corpo debilitado pela hemofilia herdada geneticamente da mãe, mas também devido a outros problemas de saúde enfrentados, como uma complicada tuberculose, ele ainda conviveu durante a infância com um ambiente que o fazia presenciar cotidianamente a morte, pois seu pai tinha uma funerária. Pacato, observador e estudioso, durante a década de 1950 teve contato e influência dos padres dominicanos. Fez parte da Juventude Estudantil Católica (JEC) e da Juventude Universitária Católica (JUC), essa última enquanto estudava Sociologia, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduou-se em 1962 e, durante o governo de João Goulart, foi assessor do Ministério da Educação e Cultura, trabalhando com o ministro Paulo de Tarso Santos. Nesse tempo, defendia a necessidade da implantação de reformas de base, para o desenvolvimento do Brasil.

Quando do golpe militar de 1964, mobilizou-se contra a ditadura sem esquecer da prioridade que sempre deu a causas sociais. Com isso, precisou exilar-se no Chile, onde assessorou Salvador Allende. Em 1973, com o assassinato do presidente chileno, em nova ação liderada por forças armadas, outra vez com idealização e apoio dos EUA, esteve refugiado na embaixada panamenha e depois morou no Canadá e no México. De volta ao Brasil, fundou em 1981 o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), junto com os economistas Marcos Arruda e Carlos Afonso. Cinco anos depois, contraiu o vírus da AIDS devido às transfusões de sangue às quais se submetia, em função da hemofilia. Ocorreu o mesmo com seus dois irmãos, que enfrentavam idêntico problema de saúde.

Ações governamentais, muitas das quais inspiradas nele, haviam retirado o Brasil do mapa mundial da fome crônica, segundo a FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations. O Fome Zero, criado por Lula no ano de 2003, foi a ampliação e aprimoramento do Comunidade Solidária, que era presidido pela primeira-dama dos governos anteriores aos do PT, Ruth Cardoso. Esse trio – Betinho, Ruth e Lula – conseguira tornar nosso país mais generoso e humano, conquista que o retrocesso atual está destruindo. A fome voltou às ruas e periferias, sendo essa uma constatação oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele assegura que de 2016 para cá aumentou em cerca de três milhões o número de pessoas sem acesso regular à alimentação básica. Isso que foram considerados apenas quem mora em domicílios ditos permanentes, sem acrescentar os moradores de rua.

Betinho faleceu em agosto de 1997, no Rio. Agora, sonharmos com “a volta do irmão do Henfil, de tanta gente que partiu”, como cantou Chico Buarque, não é o suficiente. Até porque ninguém reencarna já adulto e, além disso, ideias e ocasiões não seriam as mesmas, as necessidades pessoais poderiam ser outras. Aquela volta citada na música era a física, do exílio a que tantos que pensavam de fato no bem do país foram submetidos. Temos é – nós que ainda estamos aqui – agir no sentido de dar continuidade àquilo que ele começou. Não é possível que o mundo, no estágio evolutivo já alcançado, ainda conviva com fome e miséria. Existem recursos disponíveis para todos, mas alguns não permitem a sua distribuição. A falta de justiça social é vergonhosa. E isso não se resolve apenas com assistencialismo e preces, por mais que isso seja importante. Ações urgentes são muito necessárias, como as que Betinho jamais se furtou de protagonizar.

29.10.2020

Herbert José de Sousa, o Betinho

29.10.2020

No bônus musical de hoje, João Ricardo canta Tem Gente Com Fome, que fez sobre parte da letra de poema de Solano Trindade, que tinha o mesmo nome.