O JUIZ GENTE BOA

Francesco Caprio é um homem simples, com 83 anos e um jeito de avô bonachão, que nos últimos 35, com a mesma serenidade e dedicação, cumpre uma rotina de julgamentos de questões e delitos de baixo potencial ofensivo no Tribunal Municipal de Providence, cidade com cerca de 200 mil habitantes, no estado de Rhode Island, nos EUA. No sistema judiciário do seu país existe essa figura, de juiz com atuação no âmbito do município. Mas ele conseguiu a proeza de se tornar conhecido nacionalmente, pela maneira como cumpre sua função.

Frank, como gosta de ser chamado, não se preocupa apenas em aplicar a lei, de acordo com o que diz seu texto, friamente. Ele busca a justiça acima do direito, o que na certa seria o sonho de todas as pessoas realmente de bem – nossa, que expressão que se tornou perigosa por aqui, nos últimos tempos. Ou seja, ele humaniza uma estrutura que foi criada, em tese, para atender as pessoas, mas que se tornou uma máquina que muitas vezes desconhece o seu verdadeiro propósito. Assim, o sucesso do juiz aos poucos foi ficando tão grande que um canal de televisão local, usando prerrogativa que permite tal decisão, passou a transmitir ao vivo as sessões presididas por ele no tribunal. Com o nome Caught in Providence, que se traduz como Pego na Providência e certamente é um trocadilho, tornou-se programa de grande audiência. Nos últimos dois anos começou a ser distribuído para todo o país e isso impulsionou também vídeos produzidos pela emissora, que atingiram, em 2019, mais de cem milhões de visualizações.

Caprio nasceu e se criou em um bairro ítalo-americano, sendo o segundo de três irmãos. Seu pai era um homem humilde que trabalhava como vendedor de frutas e leiteiro. Ele estudou em escolas públicas e chegou a trabalhar como engraxate e lavador de pratos. Literalmente um lutador, uma vez que ganhou título de campeão estadual de luta livre, conseguiu acesso ao curso noturno de Direito, na Universidade Suffolk, em Boston. Já formado advogado foi eleito para o Conselho Municipal e depois para a Convenção Constitucional de Rhode Island, em 1975. Também marcou presença como delegado em cinco das convenções nacionais do Partido Democrata. Recentemente instituiu, na mesma escola de Direito na qual se formara, um sistema de bolsas de estudos, dando o nome de seu pai, que estudara apenas até a quinta série, para o fundo. Casado há mais de 50 anos, ele e a esposa tiveram cinco filhos.

Muitos dos diálogos que ele trava com as pessoas que precisa julgar, são bastante curiosos. A conversa dele com um cidadão de mais de 90 anos que foi pego dirigindo em velocidade acima do permitido, porque estava levando o filho com câncer ao hospital; ou com uma mulher que, baleada na perna, não faltou à audiência no tribunal, para não desrespeitar a lei; ou ainda a mantida com jovem autista que acompanhava a mãe em um julgamento; são bons exemplos disso. Crianças e imigrantes têm dele atenção especial. E sua posição, via de regra, é de consideração para com a parcela menos favorecida da população. Com certeza a receita municipal cai, com o perdão de multas e taxas devidas, mas em valores irrisórios considerada a pacificação social que promove.

O direito é forma de normatizar-se a vida em sociedade. Um conjunto de regras que precisam, em tese, ser seguidas para o respeito de limites no convívio e relações entre as pessoas. Mas essas normas sofrem uma série de mudanças, considerando-se o local e o tempo onde elas são aplicadas. Muitas das leis são diferentes, em países distintos. E em cada um deles também se transformam com o passar dos anos. Isso porque as sociedades são afetadas constantemente pela evolução dos seus costumes, pelas relações propiciadas pela economia, a política, cultura e religião, além das questões morais e até mesmo da linguagem. A personificação do direito é feita pela imagem da deusa romana Justitia. De olhos vendados e com uma balança e uma espada nas mãos, ela representa a imparcialidade, a ponderação e seu poder coercitivo, respectivamente. Na vida real, no entanto, as coisas não ocorrem de modo tão simples e objetivo. Nela o direito e a justiça nem sempre estão de mãos dadas. E a lei primordial, que afirma que todos somos iguais perante ela, ainda é um sonho. Desejo e perspectiva que nem sequer são compartilhadas pela totalidade das pessoas, isso porque sempre vão existir aquelas que saem ganhando se a igualdade verdadeira não se tornar nunca uma realidade. Então, o direito não raras vezes se torna mais um instrumento garantidor da perpetuação das desigualdades, ao invés de trabalhar pela sua eliminação – o que seria papel da verdadeira justiça.

Isso é que causa surpresa: quando alguém com o poder decisório de um juiz – e o sistema judicial no seu país permite isso – resolve relativizar a aplicação das leis, conforme as circunstâncias, como faz o popular Frank numa pequena utopia. Claro que decisões bem mais complexas não poderiam ser tomadas da mesma forma. Mas essa pequena utopia serve para realimentar a combalida esperança em um mundo melhor. Por isso merece aplausos o fato dele, mesmo com idade para se aposentar, preferir permanecer trabalhando. Um bom número de pessoas tem motivos para agradecer: as que ele julga e também todas as outras que ainda mantêm esperança e querem acreditar na justiça.

25.10.2020

Francesco Caprio, juiz em Providence, Rhode Island (EUA)

O bônus de hoje é diferente e especial. Trata-se de uma animação a respeito dos Direitos Humanos. Ela foi produzida através de uma parceria firmada entre a ONU Mulheres e o Instituto Coca-Cola, em colaboração com o IBAM – Instituto Brasileiro de Administração Municipal.