OS PRIMEIROS ROUNDS

Tudo bem: são 12 os candidatos à presidência que disputarão os nossos votos nas eleições de outubro. Mas tanto você, quanto eu e a torcida inteira do Flamengo – não sou nada fã desse clube, mas agora a expressão é bem conveniente – sabemos que apenas dois têm chances reais de vencer. No máximo outros dois nomes lutam pelo bronze, com ambos em grande esforço para chegar a um número de votos que atinja dois dígitos na votação em primeiro turno. Então, os movimentos dos primeiros colocados, que estão nessas posições desde que começaram a ser feitas pesquisas eleitorais, podem e devem ser olhados mais de perto. E três fatos recentes se destacam, nessa abertura de campanha oficial: as entrevistas que concederam ao Jornal Nacional, na semana passada; o início do horário de propaganda eleitoral gratuita; e o primeiro dos debates, ocorrido no último domingo, na Bandeirantes.

1 – Sobre as entrevistas na Rede Globo, quatro falaram: Bolsonaro, Ciro, Lula e Tebet, nessa ordem. A oportunidade foi ímpar, uma vez que o JN segue sendo o principal telejornal do país e nenhum dos candidatos terá outra chance de falar para um público tão amplo, ao longo de toda a campanha. Em termos de audiência – análise quantitativa –, o atual presidente marcou 32,3 pontos, seguido do petista, que ficou com 31,9. O candidato do PDT alcançou 29,2 e a emedebista registrou 21,2. Se for examinada a repercussão junto ao eleitorado – análise qualitativa –, as medições realizadas mostraram que Lula teve muito maior sucesso no sentido de provocar buscas no grupo de pessoas não alinhadas com a sua base. Ou seja, conseguiu disparadamente falar mais para fora da sua bolha, enquanto que Bolsonaro só navegou com desenvoltura entre os seus. Assim, a chance de o petista ter angariado mais votos foi muito maior.

Merece destaque ainda um trabalho importante, realizado para a aferição da qualidade do que foi dito: o realizado pela agência de notícias Aos Fatos. Ela se debruçou sobre detalhes das falas trazidas ao Jornal Nacional, com checagem de dados estatísticos e verificação dos mais diversos arquivos, apontando a possível existência de informações enganosas, não totalmente certas e destacando também as verdadeiras. No caso de Bolsonaro, ao longo dos 40 minutos da sabatina ele mentiu 20 vezes, em outras três não estava sendo totalmente verdadeiro e em duas oportunidades foi correto nas suas afirmações. Lula teve seis inverdades, em duas vezes as coisas “não eram bem assim” e somou 13 colocações absolutamente corretas. As 20 mentiras de Jair Bolsonaro se concentraram em temas como a pandemia de Covid-19 (sete delas), na corrupção existente no seu governo (quatro) e na rixa com os ministros do Supremo Tribunal Federal (três). Das seis inverdades de Lula, destaque para duas delas que estavam relacionadas a realizações dos seus governos anteriores.

2 – O horário da propaganda eleitoral gratuita na televisão começou sem nenhuma novidade digna de nota. Insosso como 0x0 no futebol, em jogo mal disputado, sem qualquer oportunidade de gol. Ninguém surpreendeu, ninguém decepcionou. Exceto, claro, quando os vídeos são vistos com olhos literalmente militantes. Mas daí é como mãe coruja, que acha seu filhote o mais lindo do mundo. A razão disso é que nesse recurso em geral se guarda munição para os últimos dias. Ou, no mínimo, os temas são colocados aos poucos, seguindo uma lógica de convencimento. Até porque não há como em poucos segundos – ou alguns minutos, para os mais aquinhoados – expor uma visão mais ampla e defender quaisquer propostas. Outro fator é que o tempo é pulverizado entre candidaturas também para governadores, senadores, deputados federais e estaduais.

3 – Quanto ao primeiro debate televisivo, esse se prestou a análises que se mostraram distintas e até mesmo contraditórias. O que mais foi motivo de concordância foram as opiniões de que Simone Tebet foi quem melhor se saiu; que Jair Bolsonaro estava contido como se houvesse sido medicado e mesmo assim pisou na bola ao agredir verbalmente a jornalista Vera Magalhães, quando essa lhe dirigiu uma pergunta; que Ciro foi mais do mesmo; e que Lula brilhou menos do que na entrevista da semana anterior. As divergências se concentraram na determinação das razões porque essas situações aconteceram.

Simone Tebet saiu radiante porque entende que cresceu muito. Se isso se confirma ela passa a ter dois trunfos: assume como liderança em ascensão, num partido que há muito se mostrava decadente, podendo almejar sucesso em situações futuras; e também se cacifa para negociar apoio em eventual segundo turno, que passa a ser mais provável justo se ela confirmar a impressão de crescimento. Os assessores de Bolsonaro, por sua vez, saíram da Band com uma nova dor de cabeça. Porque seu candidato continuou sendo um samba de uma nota só, mas desafinado. Conseguiu se repetir para o cercadinho, onde nem seria necessário. E ampliou o problema com as mulheres, justo aquela fatia do eleitorado onde ele tem maior rejeição.

Ciro foi outro que tomou algum calmante, pois estava menos raivoso do que o habitual. O que talvez o tenha deixado com reação mais lenta, em alguns momentos. O pior foi logo no começo, quando ele perguntou a Bolsonaro sobre a volta da fome, recebeu como resposta uma tangente ridícula, com o presidente falando da inflação, e não aproveitou a réplica para repetir a pergunta e mostrar que o adversário estava fugindo. Algo básico num debate. E com Lula, o que houve? As primeiras explicações apontavam uma certa apatia, um cansaço, com a maioria dos críticos correndo nessa direção. O que talvez fosse do seu interesse. O que precisa ser pensado, também, é que ele está liderando e poderia se dar ao luxo de usar esse primeiro embate para analisar o tabuleiro. Acho que fez isso e mostrou mais uma vez o quanto joga bem esse jogo.

Mesmo na ponta das pesquisas, conseguiu não ser vidraça. Pavimentou a estrada para que Tebet brilhasse e assistiu de camarote ela e Ciro irem contra Bolsonaro. Ainda mais: fez sutis movimentos para atrair esses dois para um eventual segundo turno, com alguns “quase convites” sendo antecipados. Disse que Ciro e ele ainda irão conversar; destacou a atuação de Tebet na CPI da Covid, um dos tantos calcanhares do presidente; e voltou a deixar seu principal adversário muito nervoso com a promessa de que por decreto irá acabar com a chuva de sigilos de cem anos que andaram sendo determinados sem razões plausíveis.

Além desses quatro, também o candidato à presidência pelo Novo, Luiz Felipe d’Ávila, bem como a postulante Soraya Thronicke (União Brasil), foram convidados. Supostamente isso foi feito porque os organizadores temiam que Bolsonaro e Lula pudessem faltar, e com apenas dois não seria um debate digno de ser assim chamado. Terminou ficando gente demais e reduzindo possibilidades de embates, de comparações entre propostas diferentes.

Para concluir, ressalte-se que é plenamente viável que se goste de um candidato e ache que ele não foi bem em alguma entrevista ou debate. Do mesmo modo, também pode acontecer de não se gostar de um candidato e entender que ele se saiu bem ao ser sabatinado ou debater com os demais. Também conta pontos quando entrevistado ou debatedor demonstra ter domínio da situação. Isso se percebe quando a fala é feita com os olhos na câmera – afinal sua fala é para o público, para o eleitor –; quando não precisa ler e opta pela argumentação baseada em pensamento e não previamente posta no papel, ou algo escrito na mão; e quando tem repertório variado e controle emocional. Agora é esperar pelos rounds seguintes. A luta final, essa poderá ser decidida por nocaute (no primeiro) ou por pontos (no segundo). Isso saberemos em outubro.

31.08.2022

O bônus de hoje é uma paródia de Edu Kruger, Mundo Pelo Avesso. Nela o compositor relata sua experiência ao participar de um dos grupos de WhatsApp compostos por fanáticos bolsonaristas.

ZÉ CARIOCA É OCTOGENÁRIO

Ele apareceu pela primeira vez em 1942, no filme Alô, Amigos. Mas na realidade fora gestado um ano antes, em 1941, durante viagem que Walt Disney e um grupo de desenhistas e animadores do seu estúdio fizeram ao Brasil. Eles ficaram no Rio de Janeiro, entre os meses de agosto e setembro, primeiro com o objetivo de divulgar o até então maior sucesso do grupo, que foi o filme Fantasia (1940), como também para conhecer melhor nosso país, uma vez que existia um projeto de alcançar maior penetração nos países latinos. Tanto que depois a turnê seguiu para a capital da Argentina, logo na sequência.

No retorno para os EUA foi criado o personagem brasileiro, para integrar a “Turma do Mickey”. Inicialmente os desenhistas Norman Ferguson e Franklin Thomas, que foram encarregados da missão, apresentaram a sugestão de que ele fosse um tatu-bola. Depois terminaram optando pelo papagaio, acreditando que ele, sendo mais extrovertido e alegre, seria a personificação mais próxima do povo brasileiro. Isso porque concluíram que os adjetivos que identificavam melhor os cariocas que conheceram seriam simpático, feliz e festeiro, além de preguiçoso e malandro. Foram apenas esses dois últimos um tanto pejorativos, talvez porque a viagem se deu em época na qual o Rio de Janeiro era mais provinciano e não nos tempos atuais. Mesmo assim, os roteiristas da atualidade estão operando mudanças, reduzindo a malandragem e substituindo o seu caráter duvidoso por uma personalidade otimista, mesmo sendo ele um “ferrado na vida”. Cativante a figura continua sendo.

Precisa ser destacado que aquele interesse manifestado pelos Estúdios Disney não foi fundamentado apenas na busca de consolidar mercados. Havia grande incentivo do governo do seu país, em termos de política externa, que o levava a subsidiar generosamente iniciativas dentro da “Política de Boa Vizinhança”, que fora idealizada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt – ele viria a falecer em 1945. Ela tinha como objetivo “fidelizar” o apoio dos países latino-americanos aos Estados Unidos, durante os conflitos da Segunda Guerra Mundial. Tanto que o filme produzido conta ainda com a participação de Gauchinho Voador (que representa a Argentina) e Panchito (personagem mexicano). Os três países de maior importância da região foram os contemplados.

No Brasil, Walt Disney manteve contato com Heitor Villa-Lobos e outras das nossas “celebridades intelectuais” daquela época. Mas se encantou mesmo com Paulo da Portela, um sambista que se destacou por muito tempo na cena carioca, tendo ele ajudado muito na construção do Zé Carioca. Assim, nos primeiros desenhos o papagaio apareceu de paletó, gravata e chapéu, como era característica de muitos sambistas, que com isso tentavam se livrar do estereótipo de marginal, que os acompanhava. O samba era criminalizado, assim como a capoeira e toda manifestação que descia do morro com os negros.

Depois de Alô Amigos, Zé Carioca voltou às telas ao lado de Carmem Miranda, em 1944, com Você já foi à Bahia?, que trouxe a música de Ary Barroso e João de Barro. E participou de alguns episódios de uma série de televisão apresentada nos EUA. Mas a verdadeira explosão mundial de sua popularidade ocorreu quando chegou aos quadrinhos. No início isso veio em tiras semanais, desenhadas por Bob Grant e Paul Murry, a partir de roteiros de Bill Walsh. Em todas as histórias Zé era aquele sujeito que escapa dos problemas cotidianos usando um “jeitinho”, que ainda nos identifica pelo mundo afora. Foi nesse período que também apareceram seus companheiros de aventuras: a namorada Rosinha, o melhor amigo Nestor e o antagonista Zé Galo.

Aqui entre nós a valorização maior do personagem aconteceu durante a década de 1970, quando a Editora Abril passou a publicar histórias que eram produzidas por brasileiros. Apenas nessa época ele superou a “contaminação” que carregava devido à visão externa do nosso modo de ser. Isso se deve muito ao trabalho de Moacir Rodrigues Soares, que o assumiu ainda em 1973. Até 1990 o Zé era um fenômeno, estando ele presente em cerca de um terço da produção editorial: sozinho, vendia 70 mil revistinhas por semana. Hoje, afetadas principalmente pelo advento dos celulares e a mudança no foco de interesse do antigo público que consumia HQ, a queda foi brutal. O que não nos impede de continuar reverenciando esse agora senhor de 80 anos de idade, mas que permanece tão jovem quanto nossas memórias.

29.08.2022

P.S.: Essa postagem teve que ser programada ANTES do debate entre os candidatos à presidência na Band, na noite passada. Comentário sobre isso virá na próxima crônica.

Reprodução de um dos cartazes de Alô, Amigos

O bônus de hoje é a música Papagaio, com Dudu Nobre.