CHÁ DAS CINCO

Essa pandemia e o necessário distanciamento social que provocou, somada à queda de temperatura que ocorre essa época do ano em Porto Alegre, me fizeram adotar um hábito britânico aqui em casa: tenho tomado um chá às 17 horas, quase todos os dias. Quentinho e com acompanhamento, em geral de uma fatia de bolo. Dia desses, enquanto fazia isso, me lembrei da Rainha Elizabeth. Tradicional como ela só, claro que deve manter esse costume, mesmo agora aos 94 anos. Completou recentemente, dia 21 de abril – para quem adora coincidências, a mesma data das mortes de Tiradentes e Tancredo Neves, um contra a vontade, outro contra as expectativas.

Pois, se a rainha ainda toma o tal chá preto – que na verdade trazem da Índia desde que aquele país era sua colônia –, fez isso três horas antes que eu. Já devia estar inclusive recolhida nessas horas, apesar de lá a temperatura estar aumentando, ao contrário daqui. Essa diferença óbvia se deve ao fuso horário. Mas nem sempre foi assim: antes do Século 19 as horas eram marcadas tendo-se como base apenas o movimento aparente do Sol. Então se adotou uma contagem que dividia em partes iguais o tempo, atribuindo metade para cada um: 12 horas para o dia e 12 horas para a noite. O problema é que a rotação da Terra faz com que não se tenha dias e noites de igual tamanho sempre: há variações conforme as estações do ano. Desta forma, em alguns países maiores existia diferença de horário atribuído entre cidades, sem que se tivesse como saber ao certo que horas estaria sendo adotada em cada localidade. O mesmo momento de tempo tinha horas diferentes a ele atribuídas. Além disso, as viagens internacionais, que cresciam em número e velocidade, causavam enorme transtorno para as pessoas.

Para sanar esse problema foi marcada a realização da Conferência Internacional do Meridiano, que aconteceu em 1884 em Washington. Um meridiano é uma linha imaginária que vai de um polo ao outro do planeta. É fácil entender imaginando-se os gomos de uma laranja. Eles têm cerca de 20 mil quilômetros de extensão. Os 360 graus da Terra, divididos pelas 24 horas de cada dia, resultam em 15 graus. Seria esse o tamanho de cada gomo. Ou seja, cada 15 graus de deslocamento – rotação –, uma hora a ser contada. No mesmo encontro, definiram que o Meridiano Zero, para início e fim da contagem das horas do dia, seria aquele que passa sobre o Observatório de Greenwich. Que aliás fica pertinho de Londres e da rainha em questão.

Ao todo, evidentemente, são 24 fusos horários. Metade deles ficam para oeste e metade para leste de Greenwich. Assim, as horas podem estar adiantadas ou atrasadas, considerando esse ponto inicial. Os pontos que ficam para leste estão sempre adiantados, os que ficam a oeste estão sempre atrasados. Olhem só o Brasil novamente atrasado, outra vez sem ser culpa nossa. Então, estamos três horas – três desses gomos de 15 graus cada um – atrasados em relação a Londres. As mesmas horas de cada dia lá acontecem antes.

Não sei se havia algum aditivo suspeito no meu chá, naquela tarde. Mas logo depois pensei também nos terraplanistas. Se eles estivessem certos, no mesmo momento em que o Sol nascesse lá em Londres, estaria nascendo também aqui em Porto Alegre. Afinal, as cidades estão distantes uma da outra, mas seriam como dois pratos colocados sobre uma mesma mesa. Se a luz surge numa das cabeceiras, ilumina tudo até o outro lado. A conferência aquela teria sido uma fraude. A laranja seria uma fraude. O meu chá e o da rainha seriam simultâneos. Tudo tão confuso que somente a leitura de um dos livros do guru terraplanista Olavo de Carvalho talvez pudesse me clarear as ideias. Ou, mais provavelmente, me deixaria mais atrapalhado. Mas, pelo horário do chá, não é recomendável trocar sua ingestão por algo mais forte para beber, mesmo supondo erroneamente que isso pudesse me firmar pulso e convicções. Também não pretendo fazer uso de nenhum “tarja preta”. Como tenho gostado do novo hábito, vou precisar é cuidar melhor dos meus pensamentos. Para que não sejam indigestos e me obriguem a trocar o chá preto, de hibisco ou frutas vermelhas, pelo de boldo.

30.06.2020

É IMPOSSÍVEL VIVER SEM UTOPIA

O inglês Thomas More nasceu antes de Cabral encontrar o litoral brasileiro, na altura da Bahia. Foi em Londres, no ano de 1478. E nosso país tinha apenas 16 anos de existência oficial quando ele escreveu sua obra Utopia, um romance filosófico. Este título foi inventado pelo autor, com a junção de duas palavras gregas. Eram elas “Ou” (não) e “Tottoç” (lugar). Pela etimologia, seria simplesmente “lugar que não existe”. Ele foi um humanista e leitor contumaz dos filósofos clássicos, que estudou em Oxford. Chegou a ser chanceler do Rei Henrique VIII, mas acabou condenado à morte por esse mesmo soberano, ao se opor ao seu divórcio de Catarina de Aragão, necessário para que se casasse com a amante Ana Bolena – a mulher que tinha seis dedos em uma das mãos.

Utopia foi o nome dado não apenas para essa obra de More, como também para um país imaginário que ela descreve. Nele o governo era organizado de tal modo que o povo tinha a seu dispor condições suficientes para que todos vivessem de forma equilibrada e feliz. Uma espécie de anti-Brasil – e na verdade algo que ainda não se encontrou em país nenhum, apesar de alguns estarem infinitamente mais perto disso do que nós. Essa civilização fantástica proposta pelo inglês tinha como base leis justas, instituições políticas e econômicas de fato comprometidas com o bem coletivo acima do individual ou de pequenos grupos, a divisão do trabalho e dos bens de forma equânime e a liberdade religiosa.

Na atualidade o termo é aplicado para tudo o que é sonho, para um ideal inatingível. Ou para quem busca ardentemente por ele. O utópico é o esperançoso incorrigível. É aquele que nada contra a maré e segue acreditando no futuro melhor, mesmo quando as evidências apontam em sentido contrário. Por outro lado, quando nos referimos ao pensamento utópico se entende que este seria fruto da racionalidade política, da materialização da fantasia, da luta pela conquista da vitória do ideal buscado sobre o real indesejado. More defendia a liberdade de pensamento, que seria a base, a semente a ser lançada sobre terreno fértil onde frutificariam as discussões filosóficas construtivas. E nesse lugar, em virtude dessa característica racional, a autoridade viria da razão e ela estabeleceria as condutas ao invés de reis ou na igreja. Sintetizando, no pensamento boviniano atual, More era um comunista safado, mesmo não existindo ainda o comunismo – Karl Marx nasceria apenas 302 anos depois deste livro, em 1818.

Falar em sonhos significa arriscar discussões em várias áreas distintas do conhecimento humano, como ciência, religião e cultura. A primeira, quando faz uma análise da questão fisiológica, afirma que eles são simples subproduto da atividade cerebral noturna. Aconteceria durante a fase do sono que coincidente com a movimentação rápida dos olhos. Se a análise for pela psicologia, seria a realização de desejos reprimidos quando se está na vigília, normalmente pelos “freios” que a sociedade estabelece. Quando aspectos religiosos se manifestam, garantem ser experiência revestida de significados e de poderes premonitórios, além da possibilidade de tratar-se de expansão da consciência. O sonho que a utopia representa é o cultural, o da percepção das diferenças entre o mundo real e aquele que deve ser buscado. Como pretendiam as 20 mil pessoas de 117 países que se reuniram em Porto Alegre, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial, em 2001. O slogan era tão sugestivo quanto utópico: “Um outro mundo é possível”.

Os utópicos de hoje em dia acreditam que a igualdade racial será alcançada, que é possível investir mais em saúde e educação do que em armamentos, que o combate à fome vai ser algo seriamente adotado por todos os governos, que teremos o meio ambiente finalmente protegido, que a miséria ainda será apenas uma triste recordação do passado e que a fé – seja ela qual for – não será mais utilizada como instrumento de alienação. Os pragmáticos os chamariam simplesmente de estúpidos. Mas sem essa doce estupidez, o que nos restaria?

28.06.2020

O bônus de hoje é musical. O clip de 2018 apresenta o excelente Samba da Utopia, de Jonathan Silva. Os cantores e músicos são Dinho Lima Flor, Eva Figueiredo, Karen Menatti, Luciana Rizzo, Rodrigo Mercadante e William Guedes (ordem alfabética).