RANGO, O FILÓSOFO DOS MISERÁVEIS

Um dos meus heróis, na década de 1970, era um morador de rua de Porto Alegre. Catava coisas no lixo, dormia embaixo de viadutos, tinha uma aparência lastimável, com direito a uma barriga inchada e cabelos que nunca se sabia se eram apenas rebeldes ou especialmente sujos. Mas ele era dono de uma fina ironia e de uma capacidade espantosa de perceber a realidade. Seu próprio nome já era um deboche: Rango, ao menos aqui no Sul, significa comida. Algo que ele só via e usufruía de vez em quando.

O personagem foi criado por Edgar Vasques, um ilustrador gaúcho dono de um traço de muita personalidade e de um humor ferino. Nas histórias, usava um argumento que denunciava a desigualdade social crescente, que o regime ocultava. Mas Rango não se escondia e jogava na cara da classe média obviedades que ela não tinha condições de ver sozinha. Ou apenas não queria. A primeira edição de coletânea das tirinhas, lançada em 1974, tinha o luxo de um prefácio escrito por Érico Veríssimo. E foi recordista de vendas na Feira do Livro, um dos eventos culturais mais expressivos da cidade.

Rango dividia seu mundo com o filho, que nem nome tinha, com o cachorro Boca Três – que os acompanhava, solidário – e com alguns poucos amigos. Baba era o bêbado, que preferia turvar a visão com cachaça ao invés de ver a vida que levava. Chaco o índio hispano-americano que veio de um país vizinho, tentar aqui miséria menor. E outros dois eram negros: Prévio, um ex-jornalista que perdeu tudo, inclusive a voz – quando falava faltavam pedaços das palavras nos balões – e o menino Jesuíno, de conveniente apelido Jejum. Eu comprei e tenho ainda hoje todos os sete livros originais com as tirinhas, publicados entre 1974 e 1981. O primeiro deles trazia o preço estampado na capa: dez cruzeiros.

Edgar Vasques concluiu curso superior para ser arquiteto, na UFRGS, mas nunca exerceu a profissão. Quando era estudante, em 1968, começou a trabalhar como chargista na seção de esportes do Correio do Povo. Dois anos depois criou a revista Grillus, na Faculdade de Arquitetura. Neste endereço, onde ensinavam a projetar edificações, nasceu o personagem que nunca teve uma casa. O sucesso no campus foi tão grande que começaram a surgir convites para aparições em jornais alternativos, que sobreviviam apesar da ditadura. Em 1973 teve a chance de cobrir as férias de Luis Fernando Veríssimo, na Folha da Manhã. Finalmente o Rango alcançava grandes tiragens e maior ainda aceitação. Quando o titular do espaço voltou, trataram de arranjar outro só para ele.

No ano seguinte, com dois colegas e amigos, Vasques tentou criar sem sucesso uma agência de publicidade. Acabaram por decidir publicar em livro o personagem já famoso. Para isso os outros dois, Paulo de Almeida Lima e Ivan Pinheiro Machado, fundaram a L&PM, que viria se tornar uma grande editora. Em jornais, Rango também apareceu em O Pasquim, Coojornal, Versus e Ovelha Negra, todos tendo em comum o combate à ditadura militar. E ganhou espaço também no Artes Visuales, do México; e no Charlie Mensuel, da França.

Rango sempre foi um filósofo, que destilava suas observações certeiras sobre a vida em sociedade. Lia jornais que encontrava no lixo, de onde tirava combustível para criar trocadilhos e botar o dedo na ferida. Seu corpo podia estar detonado, pela falta de nutrientes. Mas o cérebro se nutria da verdade e da angústia de ser impotente para mudar o mundo. Então, ao menos denunciava. A resistência que estava ao seu alcance. Agora em 2020 o personagem tornou-se cinquentão. Pior que sem que o mundo dos sem-teto como ele tenha mudado para melhor. E ainda com o risco de estarmos voltando a tempos com censura igual aquela que ele vivia tendo que driblar para chegar aos seus leitores.

24.06.2020