COMO DESTRUIR A NAÇÃO ATÉ 2035

Militares de três diferentes “institutos” – General Villas Bôas, Sagres e Federalistas – acabam de elaborar e divulgar documento no qual apresentam uma proposta e projeções para o nosso país, com ações que se estenderiam até o ano de 2035. Com o pomposo nome de Projeto de Nação, suas 93 páginas defendem coisas como a cobrança pelo atendimento do SUS, que constitucionalmente é universal e gratuito; o fim da autonomia das universidades; a ocupação total da Amazônia, com a remoção de todas as restrições da legislação ambiental e indígena sobre áreas que sejam atrativas para o agronegócio e a mineração; e o afastamento do Brasil daquilo que passaram a chamar de “globalismo”, que é interdependência dos países. Fazem ainda referência à suposta “falência do sistema jurídico”; à necessidade de ampliar a indústria bélica; sobre controlar a imprensa; adaptar a educação básica para o sistema das escolas cívico-militares; coibir a ação das ONGs; e ampliar a produção nacional de agrotóxicos. Ou seja, é um plano minucioso para doutrinar as pessoas, controlar as narrativas, destruir a capacidade pensante, impedir a existência dos movimentos sociais e acabar de vez com qualquer perspectiva de desenvolvimento real, nos relegando à eterna dependência e subserviência. Tudo ao melhor estilo “bater continência para uma bandeira estrangeira”.

Se fossem só essas e outras ideias absurdas, não haveria novidade alguma e nenhum problema. Mas o ponto alto é que eles propõem ainda que seja instituído uma espécie de Central de Governo, que teria a atribuição de implementar tudo o que está sendo proposto, independente dos presidentes que venham a ser democraticamente eleitos no período. Ou seja, o país do orçamento paralelo teria também um governo paralelo. Esse é o ponto alto do delírio, do abuso de poder, do desejo de ir além das suas prerrogativas constitucionais, estabelecendo uma ditadura militar sem a necessidade de armas. Ou sem elas num primeiro momento.

Adotando essas propostas a nação sem dúvida alguma estará destruída muito antes de 2035. Mas, vamos examinar esses tópicos citados, isoladamente – lembrando que não para nisso, uma vez que escolhi pela aparente relevância e não citei a totalidade dos seus 37 “temas estratégicos”. Começando pelo SUS, nosso sistema é exemplar e já foi reconhecido como destaque mundial, com o ex-presidente Obama o usando como referência para propor alterações nos Estados Unidos. Foi graças a ele, por exemplo, que não morreram ainda mais brasileiros devido à pandemia de Covid. Apenas ele pode atender a integralidade da atenção e o acesso universal, não atuando apenas no que se refere à doença. Desde a vigilância sanitária, o controle sobre a fabricação e consumo dos medicamentos e da alimentação são também atribuições suas.

A partir do SUS é que nasceu a municipalização da saúde, com a distribuição de recursos nos três níveis de governo, garantindo melhor planejamento e o seu uso de acordo com as necessidades e prioridades de cada região. Entenda-se que mesmo sendo ele fundamental para os mais necessitados, atende pessoas de todos os níveis socioeconômicos. E o seu financiamento está longe de “falir” o país, existindo recursos para sua manutenção. Mesmo que ainda existam problemas de gestão, o que deve ser discutido é o seu aprimoramento e não a adoção de cobrança pelo serviço prestado. Saúde não é mercadoria, mas um direito constitucional. Interessante é que na proposta dos “institutos” nada é falado sobre os vários Hospitais Militares, que continuariam disponíveis para os atender e a seus familiares, sem custo algum.

As universidades públicas, tão criticadas pelo atual governo, desde a sua posse, são responsáveis pela excelência em pesquisa científica. Com os resultados alcançados o país desenvolve tecnologia própria e gera desenvolvimento. Na sua autonomia está centrada a condição de atuar independente da política e de suas oscilações. No que se refere à Amazônia o atual nível de desmatamento, a contaminação dos rios com mercúrio por parte do garimpo ilegal e o desrespeito para com os povos originários são fatores que envergonham o país, além de causar enorme destruição e prejuízo econômico. Quando o mundo todo clama pelo enfrentamento dessas questões, o documento militar propõe agravar tudo. E globalismo é o termo usado por detratores da globalização, que têm a ideia de que é possível se viver fora do sistema que integra as nações, fora da cooperação internacional. Sem ela, como teríamos por exemplo resolvido o recente problema da necessidade de vacinas durante a pandemia? A rapidez com que se descobriu e passou a produzir os imunizantes se deveu ao esforço que foi feito em várias partes do mundo, simultaneamente. O Brasil mesmo contribuiu para o resultado positivo alcançado.

Se podemos dizer que o nosso sistema jurídico foi falho, isso foi quando não responsabilizou quem deu o golpe militar de 1964. Ou quando da condenação de Lula sem provas. Hoje, ao esquecer em gavetas os pedidos de investigações contra a familícia; e na morosidade com que algumas decisões de importante cunho social são tomadas. Investir em indústria bélica, quando nossos vizinhos não têm tamanho e interesse em nos causar qualquer mal, ao mesmo tempo em que não teríamos como resistir a um ataque de grandes potências, se torna uma decisão ridícula, que retira recursos de áreas prioritárias. O controle da imprensa de certa forma já está sendo feito, através de uma mídia que está no poder de poucas pessoas e de redes sociais contaminadas.

A ideia de “desideologizar” tanto a Educação Básica quanto o Ensino Superior trata-se de uma falácia. A tática de criticar exatamente aquilo que pretendem fazer. As poucas escolas cívico-militares já implantadas estão com sérios problemas. As comunidades reclamam e já comprovaram em vídeo violência física contra estudantes, na alegação de disciplina; além de intromissão na questão pedagógica, que não deveria ocorrer segundo a proposta original. Censuram os trabalhos dos alunos e conteúdos que os professores podem ou não ministrar. E se mostram cabides de emprego para oficiais aposentados. Coibir a ação de ONGs significa tirar de boa parte da população acesso a serviços que deveriam estar sendo prestados pelo governo e elas é que terminam fazendo isso. Vale para as áreas da saúde, educação, assistência social e muito mais. Quanto aos agrotóxicos, basta lembrar que o atual governo já autorizou a entrada de 1.560 novos produtos, a maioria deles com uso proibido em seus países de origem. Ou seja, seria a continuidade do desserviço de contaminar alimentos e o solo, pensando apenas nos interesses do agronegócio, que teriam acesso barateado e consequente aumento dos lucros em detrimento da saúde pública.

Simplificando, a adoção do Projeto de Nação, por parte daqueles que se julgam mais patriotas que todos os outros cidadãos, seria um verdadeiro crime de lesa-pátria. E a simples proposta aponta para a necessidade mais do que urgente de estarmos atentos às eleições de outubro deste ano. A menos que não se deseje deixar nada de herança positiva para as futuras gerações.

31.05.2022

O bônus musical de hoje é Cálice, de Chico Buarque de Holanda, com ele e Milton Nascimento. Trata-se de uma triste lembrança de um tempo que não deixa de assombrar a nossa história e nossas vidas. Época que alguns insistem em tentar fazer com que retorne.

DICA DE LEITURA

A MENTE MORALISTA, de Jonathan Haidt

(448 páginas – R$ 57,90)

“Um best-seller revelador e despretensiosamente ambicioso… Sem dúvida, um dos livros mais comentados do ano.” – The Wall Street Journal

 “Majestosamente escrito, sofisticado e estimulante. Pode muito bem mudar a maneira como você pensa e fala sobre política, religião e natureza humana.” – Edward O. Wilson, Universidade Harvard, autor de Consiliência: A unidade do conhecimento.

Enquanto os Estados Unidos mergulhavam na recente polarização e na paralisia, o psicólogo social Jonathan Haidt fez o aparentemente impossível ― desafiar o pensamento convencional sobre moralidade, política e religião de um modo que encanta a todos no espectro político. Com base em seus 25 anos de pesquisa inovadora em psicologia moral, ele mostra em seu livro como os julgamentos morais não surgem da razão, mas das emoções. Haidt explica por que liberais, conservadores e libertários têm intuições tão diferentes sobre certo e errado, e demonstra por que cada lado tem, de fato, razão sobre muitas de suas preocupações centrais. Neste livro perspicaz, porém acessível, Haidt nos dá a chave para entender o milagre da cooperação humana, bem como a maldição de nossa eterna segregação e conflitos.

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SEM AÇÚCAR

Quem não gostaria de descobrir um novo modo de interpretar a vida e aproveitá-la muito mais e melhor? A autora Flávia Helena, de Atibaia, tenta ensinar isso com seu livro de estreia, Sem Açúcar. O volume nos oferece 27 contos produzidos pela paulista, todos narrados em terceira pessoa, nos quais ela trata de enfocar afetos de homens e mulheres, quase sempre marcados pela solidão. No fundo, uma surpreendente e coesa maneira de analisar o amor, ao reinterpretar relações afetivas. O título é o de um dos textos deliciosos que o compõem.

A linguagem fluente vai tratando a cada página de temas que são de fato essenciais para a vida humana. Temos amor, sexualidade, traição, as sempre complicadas relações familiares e muito mais, tudo retratado com uma suavidade que conduz o leitor sem qualquer excesso ou drama para o interior da vida. Cada personagem se mostra como se fosse mesmo o engenheiro do seu próprio corpo, se construindo ou reformando, tendo posturas que escondem ou que mostram seus tesouros e as suas más formações. Um exemplo é a mulher seca, na qual a barriga vai aos poucos concentrando toda a liquidez que dela é drenada. Ou ainda a história da menina que não suporta perceber o despontar da sua sexualidade, se incomodando com o “mostrar peitos e bunda”. Ela resolve se esconder o tempo todo sob uma capa de plástico fininha, que vai sendo assimilada e transformada numa segunda pele, a qual se torna áspera e coberta de pelos grossos. Depois vão surgindo os músculos rígidos e a barba no rosto.

A leitura nos oferece prazer e nos permite identificar a nós mesmos ou no mínimo a alguém real, que se conhece, em alguma das dezenas de personagens que vão sendo apresentados. A facilidade com a qual Flávia nos oferece seus textos fica evidente até em duas das frases com as quais abre a obra: “As estórias desse livro, inventadas, são todas de verdade. Porque essa vida, que a gente insiste em chamar de real, essa, sim, é ficção.”

Outro exemplo sobre essa confusão natural, entre realidade e ficção, está no conto onde uma mulher, querendo refrear o choro que a consumia, passa a comer formigas. Mas não daquela forma como por tradição culinária acontece no Nordeste, no Vale do Paraíba (SP) ou na zona rural de Minas Gerais. Nesses três pontos as tanajuras são ingrediente de farofas bem populares. A do livro devora de todas as espécies e compulsivamente. Só que os insetos engolidos não se contentam em beber as lágrimas na sua origem, passando a consumir outros líquidos e a própria carne da devoradora, que começa a murchar, com rosto e corpo cada vez mais enrugados. Como vão ficando todos os nossos, com o tempo e sem formigas.

Em Cleptomania, outro dos contos, uma mulher tida como pessoa exemplar na localidade onde vive passa a furtar objetos de pouco valor de quem conhece. Mas, junto com eles, ela se apropria também de características pessoais das suas vítimas. E até mesmo afeta o destino delas, como aquela outra que é sua colega de trabalho de quem leva uma presilha. Mas fica depois com o seu noivo, também. Agora, uma das mais fantásticas situações talvez seja a do homem que rouba palavras com sua língua, da mulher a quem beijava.

Flávia Helena é professora de Literatura e já tinha contos publicados em diversas antologias. Também é autora da peça teatral Trama e do livro de crítica literária O Fabricante de Textos. Esse seu primeiro livro solo, de contos ficcionais, mostra a que ela veio e merece muito ser lido. Depois, ficaremos todos torcendo para que o próximo trabalho não demore.

29.05.2022

O bônus de hoje é a música Tous les garçons et les filles (Todos os meninos e meninas), com Françoise Hardy. Esta francesa foi considerada uma das mais bem sucedidas e influentes artistas do seu tempo, sendo extremamente popular em seu país.

PARA ADQUIRIR O LIVRO COMENTADO

SEM AÇÚCAR, de Flávia Helena

(114 páginas – R$ 34,00)

No momento ainda não temos a ilustração que reproduz a capa do livro. Quando ela estiver disponível faremos a edição, acrescentando. Mesmo assim, clicando sobre o ícone acima, que ocupa seu lugar, haverá direcionamento para a possibilidade de compra. Faça isso usando esse link e o blog será comissionado.