(SOBRE)VIVER NA RUA

Uma das coisas mais significativas que a pandemia mundial causada pelo Covid-19 nos trouxe foi, sem dúvida alguma, a ampliação da generosidade das pessoas. Na certa ainda insuficiente, devido à disparidade social ser um abismo tão grande que é muito difícil de ser preenchido com cestas básicas e agasalhos, mas indiscutivelmente houve uma grande melhora nesse sentido. Resta saber se ela terá continuidade, depois que esse perigo estiver superado. E também lamentar o elevado preço pago por essa “evolução”, que foi e está sendo o enorme número de vidas perdidas. Mesmo assim, aconteceram demonstrações com as quais não se estava acostumado e que merecem aplauso. Como por exemplo a valorização do trabalho de profissionais que antes não desfrutavam de conceito positivo algum. E a visibilidade de populações que sempre estiveram perto de todos nós, mas muito distantes dos olhos e dos corações. Como as pessoas em situação de rua. Com quase ninguém nas vias públicas, a sociedade enxergou melhor os ninguéns que não tinham como sair delas. Em Porto Alegre não há dados confiáveis, mas a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) garante ter abordado 2.679 deles desde janeiro deste ano, admitindo que o total ultrapassa 4.000. Enfim, uma realidade indigente e vergonhosa. O que não é vergonha é admitir que se pode aprender muito com essas pessoas.

Inverno de 1977. Bem cedo eu apanhava ônibus no bairro Boa Vista e vinha até o centro. Um ponta a ponta com a Linha 20, que tinha um terminal ao lado do conjunto habitacional onde eu morava, na Anita Garibaldi, e o outro no Mercado Público. Depois, subia a Borges até a altura da Duque e descia também por ela até o Largo dos Açorianos e sua histórica Ponte de Pedra. Estudava na Escola Técnica Parobé, pouco adiante. Assim, passava todas as manhãs, na ida e na volta, por baixo do viaduto Otávio Rocha (Viaduto da Borges). Esta é uma das mais bonitas obras de engenharia civil da nossa Capital. Foi incluída no primeiro plano diretor da cidade, em 1914, mas apenas 12 anos depois teve sua construção determinada pelos governantes de Porto Alegre e do Estado. Para ligar o centro com as zonas leste e sul, rebaixaram o leito da via estreita que então existia e com isso interromperam o tráfego na parte superior, obrigando a criação da elevada. O projeto foi aprovado em 1927 e sua entrega para uso efetivo da população ocorreu em 1932.

Foi das proximidades do viaduto que a população assistiu a uma incrível revoada de discos voadores, em agosto de 1954. Na parte alta ficava o prédio que abrigava a Rádio Farroupilha, que anos mais tarde passou a integrar a RBS. Com o suicídio de Getúlio Vargas o povo enfurecido invadiu o local, por identificar que a programação era entreguista. Depois de depredarem o equipamento, arremessaram pelas janelas todo o acervo de LPs, antes de concluir colocando fogo na emissora. Por toda a cidade quaisquer locais ou empresas que tivessem nome e cores associadas aos EUA sofreram ações semelhantes.

Voltando ao projeto arquitetônico, a imponente estrutura do Otávio Rocha tem três vãos, sendo que no central existem pórticos transversais e dois nichos, com esculturas criadas pelo artista plástico alemão Alfred Adloff – há inúmeras outras obras dele espalhadas pela cidade, como a estátua de Gambrinus, na fachada da antiga Cervejaria Brahma, que hoje faz parte do complexo do Shopping Total. E nos quatro cantos existem escadarias sustentadas por grandes arcadas. Enfim, uma preciosidade na qual, naquela época, nem todos prestavam atenção e valorizavam.

Quem certamente valorizava isso na ocasião eram alguns poucos moradores de rua, que dormiam recolhidos justo nas reentrâncias centrais, bem protegidos, em especial nos períodos de chuva e mais frio – muitos anos depois esses três ou quatro da época viraram dezenas e acabaram removidos de lá em um dos vários projetos de revitalização da área, realizados pela Prefeitura, sem que se saiba onde foram parar. Um destes era “figurinha carimbada”, estando lá há tanto tempo que poderia ousar um inútil pedido de usocapião da área. E foi ele que, naquela manhã da qual me lembro bem, fugindo ao seu silêncio e discrição habituais, se esforçava para parar algum dos transeuntes, em visível aflição. Parei eu, por curiosidade, depois que alguns na minha frente se esquivaram contrariados. O homem estava radiante de felicidade, sorria muito, abria e sacudia os braços, levantando o casaco de trapos que quase o agasalhava. E me explicou a razão:

– Eu fui roubado! Me roubaram essa noite enquanto eu dormia!

Contou que haviam levado sua caneca de beber água e café, além de umas peças de roupa. Acho que minha cara de surpresa ficou muito evidente. Afinal, nunca antes na minha vida eu tinha visto alguém feliz por ter sido vítima de um furto. Isso é coisa difícil de imaginar até na ficção, imagina então na vida real. Mas ele tratou de explicar:

– Eu pensava que não tinha nada, mas alguém tinha ainda menos do que eu.

Alcancei meu lanche para ele sem dizer uma palavra e segui em frente, louco de vergonha. Por ter dormido numa cama quente; por ter tomado um bom café da manhã feito pela dona Vicentina. Por ter dinheiro para pagar o ônibus e estar estudando em uma boa escola. Por ter a possibilidade real de um futuro, enquanto ele tinha no máximo um passado – se expressava bem e denotava ter boa instrução. Não faço ideia do que me foi ensinado na aula, naquela manhã. Mas tenho certeza que a maior lição eu tive no caminho.

30.04.2020

GRITOS CONTIDOS E EXPLÍCITOS

Em sua coluna no GZH de 23 de abril, Kelly Matos relata a dolorosa situação de duas mães de filhos autistas que, por ficarem mais tempo em casa em função da pandemia, estariam “incomodando” vizinhos pelo barulho que fazem. Num dos casos a pessoa do apartamento ao lado, sensível aos sons mas insensível ao que nos torna humanos, sugeriu que mãe e filho fossem para algum sítio distante. Algo como se fez no passado com quem tinha hanseníase, em Porto Alegre, empurrados para o Hospital Colônia de Itapuã. Os nazistas também fizeram isso na Alemanha, pouco antes de adotarem algo mais definitivo, que chamaram de “solução final”: o encaminhamento direto para a morte de quem tinha qualquer doença com pouca perspectiva de melhora, assim como deficientes mentais e físicos. Voltando ao relato da jornalista, a senhora incomodada chegou a imitar a criança, correndo e fazendo barulho como se também autista fosse. E a segunda mãe contou que já foi inclusive ameaçada de denúncia no Conselho Tutelar, certa ocasião. Evidente que o direito ao sossego das demais pessoas deve ser assegurado, mas a solução de situações como essas tem que passar por uma discussão social a respeito das formas de acolhimento. A responsabilidade não pode recair toda sobre os ombros das mães e não há culpa das crianças.

Ao ler isso, de imediato recordei de O Grito, uma telenovela da Rede Globo que foi ao ar entre o final de outubro de 1975 e abril de 1976. Ocupava o antigo horário das 22 horas. Esteve nessa faixa entre Gabriela e Saramandaia, outros dois sucessos da emissora. Seu autor foi o paulistano Jorge Andrade, que faleceu em 1984. Também dele a Globo levara ao ar Os Ossos do Barão, dois anos antes. Mas essa história marcou época por ser algo distante de uma trama romântica, sendo muito mais um trabalho experimental. Rendeu até uma tese de doutorado, defendida por Sabina Anzuategui, em 2012, com a qual ganhou o título de doutora em comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Um deputado paulistano chegou a protestar contra a novela no Congresso, pela crueza da história. A teledramaturgia centra tudo, neste caso, em garoto que também incomodava alguns vizinhos, devido à doença que tinha. Seguido se ouve falar que a arte imita a vida. Mas agora é a vida que está imitando a arte.

Em O Grito todo o tempo da narrativa equivale ao espaço de uma única semana. E as locações são quase claustrofóbicas, feitas em sua imensa maioria no local onde habitam os personagens. Conta a história de moradores de um prédio residencial, na cidade de São Paulo, com seus inúmeros conflitos. O edifício, que sofre forte desvalorização devido a uma obra pública nas proximidades, fora construído em terreno de família quatrocentona, com seus dois últimos remanescentes ainda ocupando a cobertura. Além do casal – Edgar e Mafalda -, vivido na época por Leonardo Villar e Maria Fernanda -, existiam vários moradores, todos acima de quaisquer suspeitas e todos, sem exceção, com segredos que temiam ver expostos: Agenor, um executivo; o arquiteto Rogério; a aeromoça Midori; o professor universitário Gilberto; o médico Orlando; a secretária Kátia; e a estudante Estela. Havia ainda o síndico e o zelador, além de um delegado de polícia, de tocaia nas proximidades, para identificar um contrabandista que acreditava residir no prédio. Mas centrais mesmo na história são a ex-freira Marta (Glória Menezes), que vive com seu filho Paulinho (Marcos Andreas), menino que tem limitações determinadas por doença mental e costuma, com relativa frequência, gritar nas madrugadas.

O conflito central se estabelece a partir de uma reunião de condomínio, dividindo moradores entre expulsar ou não mãe e filho do prédio. Paralelamente ocorre o desaparecimento de um interceptador telefônico, levando todos a crer que alguém esteja ouvindo e espionando os demais vizinhos. Este fato de certa forma se confirma quando surge uma carta, anônima e ameaçadora: “Conheço o segredo de todos! Ainda estão escondidos, mas poderão ser revelados! Cada um terá o seu preço.” O clima de desconfiança vai aumentando a intolerância, enquanto vão sendo mostradas aos telespectadores questões como traição matrimonial, vida dupla de morador que costuma se travestir, compulsão por compras, solidão, tentativa de suborno, ameaças e manipulações. Próximo do final ocorrem inclusive uma morte e um sequestro. Merece registro o elenco estelar que atuou na novela, que teve entre outros Walmor Chagas, Ney Latorraca, Rubens de Falco, Yoná Magalhães, Tereza Rachel, Elizabeth Savalla, Marcos Paulo e Lídia Brondi.

Os gritos do menino doente assombravam os moradores, mas no fundo não tanto quanto as suas próprias culpas e seus fantasmas. Marta mesmo se questiona sobre a possibilidade da situação do filho ser decorrente dela ter abandonado a vida religiosa e casado. Como se Deus a tivesse castigado pela decisão do passado. Outra moradora era sobrevivente do incêndio do Edifício Joelma, costumando ter pesadelos tão terríveis quanto os gritos. Na verdade, da cobertura ao térreo, cada um tem algum delito ou “imperfeição” que deseja escondida. A do garoto é explícita, o que talvez seja a razão do incômodo dos demais. Agora um “spoiler“, que pode ser dado porque a Globo não pretende reapresentar a novela: o menino morre durante a realização de uma segunda reunião de condomínio, convocada justamente para que votassem pela expulsão ou não. Ao velório todos comparecem e vão recordando seus traumas pessoais, enquanto o padre faz o sermão. O corpo é cremado e a mãe espalha as cinzas por todos os lugares anteriores dos quais já tinham sido obrigados a sair. Mas na última cena se ouve um novo grito, que ecoa pela cidade. Porque continuam existindo traumas humanos na metrópole, que seguem gritando, externando o desejo de solução, mesmo que improvável.

28.04.2020

Abaixo, um “link bônus” que dá acesso a outro grito. Esse em tela.

http://www.sabercultural.com/template/obrasCelebres/O-Grito-Edvard-Munch.html