FUTEBOL NO INTERVALO DA ESCOLA

Quando eu estudava no Instituto Educacional Professor Luiz Dourado, bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre, todos os alunos da minha turma traziam pedaços de pano e papel velho de casa. Nos períodos antes do intervalo a gente trabalhava produzindo algo parecido com uma bola de futebol, que seria usada nos minutos de intervalo, no pátio. A vida do artefato era breve, porque o senhor encarregado da disciplina a recolhia sempre, cumprindo ordens da direção. Aquele tempo sagrado deveria ser todo ele utilizado para se consumir um lanche, descansar recuperando energias e voltar com disposição para os períodos da segunda metade do turno. Mas para nós o futebol também era sagrado. Assim, aquele arremedo quase esférico, finalizado com barbante e fita adesiva, que também se trazia, era um instrumento que nos levava aos céus. E nos fazia voltar para a sala suados e não exatamente limpos, devido à poeira levantada, além de muito felizes. No dia seguinte, tudo se repetia. Quando o ano terminou acho que eles tinham um armário inteiro cheio com o fruto do nosso artesanato esportivo.

Nossa escola era dirigida com mãos de ferro e coração de veludo, pela Dona Dagmar, viúva do fundador. Seu filho Hélio Dourado – que depois viria a ser o presidente do Grêmio Porto-Alegrense que construiu o anel superior do Estádio Olímpico e foi campeão do Brasil, além de tetra gaúcho – também cumpria essa função, mas atuava mais no aspecto administrativo, enquanto ela tratava do pedagógico. Essa ligação dele com o futebol pode ter sido importante na punição diária se restringir ao recolhimento das bolas fabricadas. No fundo faziam vistas grossas, tanto que só recolhiam muito perto do final da partida disputada, o que ficava facilitado pelo fato de nunca ninguém ter se machucado sério. Com a energia que se tinha, acho que as professoras também preferiam que a gente estivesse cansado e menos ativo.

Esse jogo acontecia no pátio do prédio novo. No ano anterior a turma já era praticamente a mesma, mas tínhamos aulas na sede antiga, duas quadras distante, onde existiam saguis em área cercada, mais árvores e menos espaço para o “esporte”. Esse segundo tinha vários andares, salas amplas, tudo muito moderno. O Instituto vivia uma fase áurea e era muito respeitado. A educação em geral era mais respeitada. Escolas públicas e particulares, como a nossa, mantinham nível próximo de excelência, os professores tinham orgulho do seu trabalho e de sua importância. Lembro também que, com um uniforme feito especialmente, de calças brancas e blusas coloridas, desfilamos na Parada de Sete de Setembro em plena Avenida Farrapos. Todos radiantes, numa época em que para se estar com as cores da bandeira bastava ser patriota e não era exigido nenhum atestado de poucas luzes. O que, convenhamos, não ficaria bem para uma escola.

Aquele futebol do intervalo era um exemplo de democracia. Todos que queriam, podiam participar. Não importava o nível de habilidade, sendo que craques e “pernas de pau” eram rigorosamente respeitados. Juízes não eram necessários e as dúvidas se resolvia na hora: de quem era a lateral, já que nem linha havia além da imaginária; se a bola entrara ou não no gol improvisado por mochilas; se a falta de fato acontecera. Para a decisão ser tomada, havia uma argumentação breve, votos e veredito, sem burocracia. Ninguém jamais recorreu a tribunal algum. E vencedores e vencidos se confundiam e revezavam, dia após dia. Sujeira, só na roupa, no cabelo e na pele, problema resolvido no banho e na paciência das mães para lavar outra vez o uniforme. Quem dera se a vida fosse sempre simples assim.

30.12.2020

O bônus musical de hoje é o áudio de Maracanã, uma toada de Raul Ellwanger, compositor e músico gaúcho, com Vicente Barreto, compositor e instrumentista baiano radicado em São Paulo.

Informação: a próxima postagem será feita em 02.01.2021.

O AMANTE MORAVA NO SÓTÃO

A história tem semelhança com parte da narrativa de Parasita, o filme sul-coreano vencedor do Oscar em 2020 – ganhou outras três estatuetas além da premiação maior, de melhor filme do ano. Na ficção, um dos pontos disparadores do conflito central é o fato de uma funcionária de família rica manter escondido no porão da casa onde trabalhava, companheiro que não tinha outro lugar para morar. Na vida real, uma mulher da cidade de Milwaukee, estado de Wisconsin, nos EUA, teve ao longo de dez anos seu amante morando no sótão de casa, sem que o marido desconfiasse. Foi no começo do século passado.

Dolly Oesterreich era uma pessoa solitária, que não recebia a devida atenção do esposo, o empresário do ramo têxtil Fred Oesterreich. Estava sempre em casa e a única forma de ocupar o tempo era com pequenas costuras. Até que um dia sua máquina quebrou e um jovem funcionário da empresa da família foi tentar resolver o problema. O rapaz tinha apenas 17 anos na ocasião, mas surgiu interesse recíproco entre a mulher experiente e o adolescente. Passaram então a se encontrar com frequência, o que gerou desconfiança entre vizinhos, em época e local conservadores. Primeiro ela justificou dizendo que se tratava de um sobrinho seu que vinha lhe pedir dinheiro. Depois, para evitar a continuidade dos comentários, optou por uma saída radical: manter o amante direto dentro de casa. Para tanto, preparou acomodações no sótão, contando também com a pouca atenção do marido que, quando em casa, preferia mesmo era beber seu uísque em paz.

Essa situação insólita durou cinco anos. Em 1918 o marido decidiu que se mudariam para Los Angeles, devido à expansão dos negócios. Ela aceitou, condicionando que escolheria pessoalmente a nova residência do casal, que não tinha filhos. Assim, pode outra vez providenciar um mínimo de conforto para o amante Otto Sanhuber, que já estava com 22 anos e seguia aceitando a alternativa. Mas, numa fatídica noite de agosto daquele mesmo ano o rapaz ouviu os gritos da mulher, que estava sofrendo agressão do marido, e resolveu descer para ajudá-la. Fred o reconheceu, percebeu também o que estava acontecendo e sacou uma arma. Após entrarem em luta corporal, um disparo vitimou o dono da casa. A saída foi fingirem um assalto: ela foi presa dentro de um armário e ele retornou para seu esconderijo habitual. E a história colou, com a polícia não conseguindo comprovar ter sido diferente do relatado por ela.

O mais estranho é que, mesmo agora ambos podendo assumir a relação, depois de algum tempo de espera que fosse conveniente, Otto estava tão habituado a viver no sótão que preferiu ficar por lá. Então, além dele, ela começou dois novos relacionamentos. Com o jovem Roy Klumb, um vizinho que a ajudou a esconder a arma do crime; e com o advogado que a defendeu, Herman Shapiro. Esse último, que também era ocupado demais, terminou casando com a viúva. Foi quando ela preferiu voltar à rotina anterior, com o marido no trabalho e Otto no sótão, terminando com Roy. O que foi seu erro: ao sentir que havia sido usado, esse último revelou à polícia que tinha havido luta, que ela conhecia o agressor e o local da arma escondida. Mesmo assim, com o revólver corroído e sem a existência de uma perícia técnica apropriada, ela seguiu negando e não foi condenada pelo crime. Mas no período em que permaneceu detida, não havia quem levasse comida para Otto, não restando outra opção além de contar para Shapiro que um “irmão” morava escondido no sótão e precisava de socorro imediato. O homem foi ao local e encontrou o outro tão debilitado que, em meio a delírios, acabou revelando toda a verdade sobre os agora dez anos que passara vivendo daquela forma. Desta vez sim, tudo terminou vindo a público.

28.12.2020

A ilustração reproduz detalhe de obra do artista surrealista belga René Magritt, Os Amantes, de 1928.
O artista retrata um beijo, com os protagonistas envolvidos pelo “tecido das relações sociais mais íntimas”.

O bônus de hoje é a música Os Amantes, de autoria de Luiz Ayrão. São intérpretes Os Demônios da Garoa, com participação especial de Paulo Miklos e Roberta Sá.