Página 2 de 8

A ERA DE AQUARIUS NÃO SE CONFIRMOU

Um musical encenado na Broadway, nos anos 1970, alcançou tamanho sucesso que terminou sendo transformado em filme que teve grande repercussão mundial, mesmo em época na qual a distribuição não tinha toda a estrutura hoje existente. Falo de Hair, dirigido por Milos Forman, que teve John Savage, Treat Williams e Beverly D’Angelo nos papéis principais. Basicamente eles, o musical e o filme, contam com pequenas diferenças a história de um jovem vindo do interior dos EUA para Nova Iorque, com o objetivo de apresentar-se para servir como soldado na Guerra do Vietnã. Completamente alheio à realidade do mundo, sendo verdadeiro estranho no ninho na cidade grande, ele termina conhecendo e ficando amigo de um grupo de hippies pacifistas, que vivem nas ruas. Esse fato circunstancial provoca uma alteração radical na sua vida.

A estreia internacional da película ocorreu em 1979. No ano seguinte ele foi indicado para a disputa do Globo de Ouro de Melhor Filme Musical, tendo perdido para Breaking Away (no Brasil, O Vencedor), do diretor inglês Peter Yates. Mas a resposta em mídia e bilheteria foi grandiosa. Anos depois, em 2004, a música Aquarius, que integra sua trilha sonora e havia se tornado icônica, foi considerada a 33ª melhor da história do cinema norte-americano. Essa escolha foi feita pelo American Film Institute. A canção foi composta sobre a crença astrológica então vigente, de que o planeta iria entrar na chamada Era de Aquarius, um período onde seriam vivenciados profundamente o amor, a paz e o senso de humanidade, a partir do final do século XX. Ou seja, o reverso do que se vivia até então, durante a Era de Peixes. Importante salientar que boa parte dos astrólogos sempre divergiu quanto a isso. E também que a fase auspiciosa não passou de um sonho.

O mundo todo vinha passando por profundas mudanças nas relações sociais, desde os anos 1950. Nos EUA isso começou a partir de um grupo de escritores e escritoras que se reuniam com o objetivo de alinhar obras literárias que fizessem uma crítica necessária ao modo de vida vigente. Entre eles estavam Allen Ginsberg, Anne Waldman, Elise Cowen, Jack Kerouac e William Burroughs. Foi a partir deles que se estabeleceu a cultura beat, que questionava os valores tradicionais do Ocidente como um todo. Não aceitavam mais o consumo exagerado, os padrões exigidos de beleza, a violência crescente, a submissão da mulher e a moral hipócrita. Já o movimento hippie foi uma espécie de herdeiro dessa cultura, mas indo além de uma escola literária, partindo para uma postura real e de ação diante dos fatos. Surgiu primeiro em São Francisco, no Califórnia, pregando uma vida simples, o respeito à natureza, o amor livre e o pacifismo.

No filme Hair, o protagonista Claude conhece e se apaixona por uma jovem milionária chamada Sheila, quando a vê praticando equitação. Há reciprocidade e ela, posteriormente, tenta dissuadi-lo da ideia de servir numa guerra absurda, tanto quanto os novos amigos hippies que ele fez. A providência primeira tomada pelo grupo é queimar o seu cartão de alistamento. Mas uma reviravolta acontece e mais um jovem termina sendo levado para a morte, milhares de quilômetros distante de sua terra natal.

A Guerra do Vietnã, ou Segunda Guerra da Indochina, envolveu também o Laos e o Camboja, tendo durado 20 anos. Além dos países que tiveram seus territórios diretamente atingidos, existiam também contingentes militares da Austrália, Nova Zelândia, Filipinas, Tailândia e EUA. Esse último enviou um total de dois milhões e 300 mil soldados e realizou bombardeios sistemáticos, além de ter feito uso de armas químicas, como o “desfolhante laranja”. Estimativas apontam para a morte de dois milhões de civis vietnamitas, e 900 mil dos seus soldados. A opinião pública norte-americana, mesmo diante de tamanho morticínio de “piolhos humanos” – modo como se referiam aos inimigos –, sempre se mostrou favorável à participação no conflito. Isso até que a resistência começou a fazer vítimas também entre os invasores. Voltaram para casa em sacos fúnebres 58.203 deles. Outros 303.635 retornaram feridos e mutilados. Só então houve o clamor pelo retorno dos seus soldados ainda vivos. O que explica o desejo incontido de que essa história de Era de Aquário fosse real e urgente.

26.12.2020

Grupo de atores e atrizes na adaptação brasileira de “Hair”, de Charles Möeller e Claudio Botelho

O bônus de hoje é um trecho do filme Hair, com a cantora Ren Woods interpretando Aquarius, em cena com dançarinos, no Central Park. É um dos momentos icônicos do filme de Milos Forman.

DOIS CLÁSSICOS DE NATAL

Ninguém conseguiu até hoje, na minha modesta opinião, retratar melhor o verdadeiro espírito de Natal do que dois escritores, o inglês Charles Dickens e o dinamarquês Christian Andersen. São eles os autores de duas obras contundentes, quase definitivas, sobre essa data que é para os cristãos a mais importante do ano. Cada um ao seu modo, foram capazes de apresentar um conjunto contraditório, com a emoção e a miséria humana contrastando com a espiritualidade, que deveria ser a marca maior desse momento. Mas ambos os textos trazem clamores pela generosidade, pela necessidade primária de vermos o outro e sentirmos a sua dor.

Em Um Conto de Natal, de Dickens, publicado em 1843, o personagem principal é Scrooge, um homem avarento, solitário e mesquinho. Ele odeia o Natal e tudo o que a data representa. No seu entender, isso não passa de perda de tempo e desperdício de dinheiro. Mas a inesperada visita do espírito de um antigo sócio seu, chamado Marley, anuncia que ele será assombrado por outros três naquela mesma noite, que lhe mostrarão passado, presente e futuro de sua vida. Seria oportunidade de revisitar seus erros, perceber até onde eles o conduziram e antever as consequências ainda piores que estavam por vir. Esses três momentos, em que o velho consegue ver a si mesmo, revivendo situações, se tornam a grande tirada da história. Porque ele próprio poderá se julgar, não sendo esta tarefa transferida para ninguém. Curioso é que o autor produziu esse conto atendendo a um pedido, apenas porque precisava de dinheiro para pagar contas. Ele não imaginava a repercussão que a obra teria, vindo a tornar-se um verdadeiro clássico.

Charles John Huffam Dickens nasceu em 1812 e foi o mais popular entre todos os romancistas da era vitoriana, tendo tido a sorte de alcançar fama ainda em vida. De estilo realista e com forte crítica social, seus dois maiores sucessos foram Oliver Twist (1838) e David Copperfield (1849). O primeiro relata as desventuras de um rapaz órfão, apontando que o fenômeno da delinquência tinha relação direta com a precariedade das condições sociais da época. Pela primeira vez um romance inglês era escrito tendo como protagonista uma criança.  Ele ganhou várias versões cinematográficas, sendo talvez a mais famosa a de 2005, dirigida por Roman Polanski. O segundo foi inspirado na vida do autor, sendo uma narrativa que acompanha um jovem desde a infância até a maturidade. Esse também foi para as telas dos cinemas, em quatro oportunidades, a mais recente delas no ano 2000. E quanto a Um Conto de Natal, animação excelente foi realizada pelos Estúdios Disney, em 2009, além de existirem adaptações anteriores.

Em A Pequena Vendedora de Fósforos, conto publicado em 1845, apenas dois anos depois do texto de Dickens, Andersen conta a história de uma menininha russa que tenta vender fósforos na rua coberta de neve, na véspera de Natal. Os passantes não lhe dão atenção, não a enxergam simplesmente. E no desespero trazido pela fome, pelo frio que está enfrentando, pela solidão, ela termina usando um por um, todos eles consigo mesma. Fonte insuficiente de calor, diante da ausência absoluta do calor humano, eles simbolizam a esperança que ia aos poucos se esvaindo. E o destino inevitável fica apenas aguardando que o último deles se apague.

Hans Christian Andersen nasceu em 1805 e foi um conhecido autor de peças de teatro, canções, poemas e em especial contos infantis e fábulas. Quem nunca ouviu falar de O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo e A Roupa Nova do Imperador, por exemplo? Essas histórias o tornaram mundialmente famoso, tendo sua produção traduzida para dezenas de idiomas. Curioso é que seu pai analfabeto foi quem lhe inspirou a escrever, contando a ele muitas histórias que aprendera por transmissão oral. Ele também fez para o filho um teatro de marionetes, no qual representavam textos conhecidos e outros que suas imaginações permitiam. Uma ONG suíça, desde 1956, o homenageia com a entrega de distinção anual que é considerada o “Prêmio Nobel” da literatura infanto-juvenil e leva seu nome.

Ambientadas no hemisfério norte, onde as Festas ocorrem no inverno, algo muito diferente do que vivemos no Brasil e seu calor, as duas histórias têm conteúdo que vão além da distância geográfica e do passar do tempo. Se perpetuam por mostrar valores universais, reais ou almejados. São atemporais e verdadeiras porque registram o que há de humano e desumano em nós. E talvez justo por exporem essa contradição tenham maior valor literário e sejam tão interessantes. Podem confiar na recomendação.

24.12.2020

A Pequena Vendedora de Fósforos

No bônus musical de hoje, uma gravação histórica com Elvis Presley e Martina McBride cantando juntos Blue Christmas (Natal Azul).