Ninguém conseguiu até hoje, na minha modesta opinião, retratar melhor o verdadeiro espírito de Natal do que dois escritores, o inglês Charles Dickens e o dinamarquês Christian Andersen. São eles os autores de duas obras contundentes, quase definitivas, sobre essa data que é para os cristãos a mais importante do ano. Cada um ao seu modo, foram capazes de apresentar um conjunto contraditório, com a emoção e a miséria humana contrastando com a espiritualidade, que deveria ser a marca maior desse momento. Mas ambos os textos trazem clamores pela generosidade, pela necessidade primária de vermos o outro e sentirmos a sua dor.

Em Um Conto de Natal, de Dickens, publicado em 1843, o personagem principal é Scrooge, um homem avarento, solitário e mesquinho. Ele odeia o Natal e tudo o que a data representa. No seu entender, isso não passa de perda de tempo e desperdício de dinheiro. Mas a inesperada visita do espírito de um antigo sócio seu, chamado Marley, anuncia que ele será assombrado por outros três naquela mesma noite, que lhe mostrarão passado, presente e futuro de sua vida. Seria oportunidade de revisitar seus erros, perceber até onde eles o conduziram e antever as consequências ainda piores que estavam por vir. Esses três momentos, em que o velho consegue ver a si mesmo, revivendo situações, se tornam a grande tirada da história. Porque ele próprio poderá se julgar, não sendo esta tarefa transferida para ninguém. Curioso é que o autor produziu esse conto atendendo a um pedido, apenas porque precisava de dinheiro para pagar contas. Ele não imaginava a repercussão que a obra teria, vindo a tornar-se um verdadeiro clássico.

Charles John Huffam Dickens nasceu em 1812 e foi o mais popular entre todos os romancistas da era vitoriana, tendo tido a sorte de alcançar fama ainda em vida. De estilo realista e com forte crítica social, seus dois maiores sucessos foram Oliver Twist (1838) e David Copperfield (1849). O primeiro relata as desventuras de um rapaz órfão, apontando que o fenômeno da delinquência tinha relação direta com a precariedade das condições sociais da época. Pela primeira vez um romance inglês era escrito tendo como protagonista uma criança.  Ele ganhou várias versões cinematográficas, sendo talvez a mais famosa a de 2005, dirigida por Roman Polanski. O segundo foi inspirado na vida do autor, sendo uma narrativa que acompanha um jovem desde a infância até a maturidade. Esse também foi para as telas dos cinemas, em quatro oportunidades, a mais recente delas no ano 2000. E quanto a Um Conto de Natal, animação excelente foi realizada pelos Estúdios Disney, em 2009, além de existirem adaptações anteriores.

Em A Pequena Vendedora de Fósforos, conto publicado em 1845, apenas dois anos depois do texto de Dickens, Andersen conta a história de uma menininha russa que tenta vender fósforos na rua coberta de neve, na véspera de Natal. Os passantes não lhe dão atenção, não a enxergam simplesmente. E no desespero trazido pela fome, pelo frio que está enfrentando, pela solidão, ela termina usando um por um, todos eles consigo mesma. Fonte insuficiente de calor, diante da ausência absoluta do calor humano, eles simbolizam a esperança que ia aos poucos se esvaindo. E o destino inevitável fica apenas aguardando que o último deles se apague.

Hans Christian Andersen nasceu em 1805 e foi um conhecido autor de peças de teatro, canções, poemas e em especial contos infantis e fábulas. Quem nunca ouviu falar de O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo e A Roupa Nova do Imperador, por exemplo? Essas histórias o tornaram mundialmente famoso, tendo sua produção traduzida para dezenas de idiomas. Curioso é que seu pai analfabeto foi quem lhe inspirou a escrever, contando a ele muitas histórias que aprendera por transmissão oral. Ele também fez para o filho um teatro de marionetes, no qual representavam textos conhecidos e outros que suas imaginações permitiam. Uma ONG suíça, desde 1956, o homenageia com a entrega de distinção anual que é considerada o “Prêmio Nobel” da literatura infanto-juvenil e leva seu nome.

Ambientadas no hemisfério norte, onde as Festas ocorrem no inverno, algo muito diferente do que vivemos no Brasil e seu calor, as duas histórias têm conteúdo que vão além da distância geográfica e do passar do tempo. Se perpetuam por mostrar valores universais, reais ou almejados. São atemporais e verdadeiras porque registram o que há de humano e desumano em nós. E talvez justo por exporem essa contradição tenham maior valor literário e sejam tão interessantes. Podem confiar na recomendação.

24.12.2020

A Pequena Vendedora de Fósforos

No bônus musical de hoje, uma gravação histórica com Elvis Presley e Martina McBride cantando juntos Blue Christmas (Natal Azul).

3 Comentários

  1. Eu acrescentaria ainda dois contos brasileiros: Natal na barca, de Lígia Fagundes Teles, e – o que mais me encanta desde a década de 70, do século passado – Presepe, de Guimarães Rosa.
    “Natal era noite nova de antiguidades. Tintins , tilintos, laldas e loas.”🎄

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