A INACREDITÁVEL GUERRA DA LAGOSTA
Nos tempos atuais, quando a história que interessa não é a real, mas a relatada ou mesmo nenhuma, porque o silêncio e o esquecimento podem ser muito interessantes e convenientes, se torna perfeitamente possível acreditar que poucas pessoas saibam disso. Mas o Brasil e a França estiveram em vias de conflito armado, entre 1961 e 1963. E o motivo foi um crustáceo muito apreciado naquele país europeu, onde a culinária sempre foi mais valorizada do que aqui. Me refiro à lagosta, que na verdade é um dos vários decápodes – grupo que inclui camarões, siris e caranguejos – marinhos diferentes. Tornando sua descrição algo mais inteligível para os mortais normais, entre os quais me incluo, é um bicho com casca dura e avermelhada, um par de antenas longas e duas garras destacadas na frente, que pode pesar mais de um quilo. Mas nada disso interessa, a não ser o fato de ser muito caro e, portanto, ter relativa importância econômica.
Navios franceses passaram a pescar lagostas indiscriminadamente e sem autorização, nas costas do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, dentro do perímetro das nossas águas territoriais. Diante dos protestos do governo brasileiro, apresentaram justificativa de ser com “interesse científico” que estavam fazendo a captura. Toneladas e toneladas de pesquisa, portanto. A marinha francesa, em apoio aos seus barcos de pesca, chegou a enviar junto um navio de guerra, o Tartu. E a Força Aérea Brasileira o sobrevoou, aguardando apenas pela ordem de atacar, o que felizmente não houve. Com a aproximação também da esquadra brasileira, ele acabou se retirando. Mas um impasse sério já estava formado e o então presidente Jânio Quadros determinou a elaboração de um plano de ataque contra a Guiana Francesa, que seria invadida em represália. O responsável foi o comandante do IV Exército na época, general Humberto de Alencar Castelo Branco – um dos líderes golpistas em 1964. O que também não foi levado adiante. Naquela época tínhamos uma diplomacia mais atuante e a beligerância potencial foi contida pelo bom senso.
O absurdo passou para as páginas dos jornais. Um debate inacreditável seguiu-se, com jornais franceses perguntando se a lagosta nadava ou andava. No entender deles, se nadasse seria considerada um peixe, sem estar necessariamente ligada ao Brasil, mas sim solta no oceano e livre para ser capturada por eles. Apenas se ela andasse, ficando ligada ao fundo do mar, poderia ser considerada como pertencente ao nosso território. Um almirante brasileiro contra argumentou que se ela pudesse ser considerada um peixe ao dar seus “pulinhos” e se afastar do leito oceânico, então o canguru australiano, ao dar seus saltos, deveria ser chamado de ave.
Charles de Gaulle teria então chamado o embaixador brasileiro em Paris para uma conversa reservada no palácio. Na noite seguinte, o mesmo diplomata brasileiro foi a um jantar na casa do presidente da Assembleia Nacional, Jacques Chaban-Delmas, encontro informal que reunia velhos e bons amigos. Não se sabe se foi servida lagosta, na ocasião, mas é razoável suspeitar-se que champagne sim. Ou seja, nossa indignação não deve ter sido considerada pelos anfitriões como algo real. E isso é que pode ter motivado a frase atribuída ao presidente francês “Le Brésil n’est pas un pays sérieux” – “O Brasil não é um país sério”. Mas, a bem da verdade, jamais foi confirmado se ele realmente chegou a dizer isso.
14.12.2020
Como não se pode atribuir muita seriedade à guerra que não houve, o bônus musical de hoje também é uma brincadeira. A canção infantil Da Lagosta, Eu Gosto!, de Érika Machado. Ela foi feita sob encomenda para o CD Aquático, de Ana Cristina, que fez os arranjos junto com Caio Gracco. Convidem seus filhos, sobrinhos ou netos e divirtam-se junto com eles.