DUAS VEZES QUEEN

Quem me apresentou a banda foi minha colega Josiane. Estudamos juntos quando eu fazia o pré-vestibular para Engenharia Civil, em 1977. Um ano difícil, no qual também me dividia entre a Escola Técnica Parobé e o Julinho. Três endereços e dois turnos diários de estudo; um pai hospitalizado que não chegou a me ver universitário; grana curtíssima e faltando tempo até para ser rebelde, como seria normal em qualquer adolescência. Ouvia música quando podia, em especial discos de Belchior e Pink Floyd, além da programação da antiga Rádio Continental. Mas a menina tinha todos os álbuns do Queen até então lançados e o som que vinha deles era incrível. Continuamos amigos e convivendo por um bom período, antes de nos afastarmos por mudança de cidade e circunstâncias da vida de quem vai ficando adulto. Mas sempre ouvindo o que vinha de novidade deste grupo britânico que reinou por duas décadas nas paradas de sucesso.

Queen foi um dos recordistas mundiais em termos de vendagem de discos, com os 15 álbuns que lançou, mais as coletâneas e os trabalhos distribuídos em vídeo. Fundada em 1970, a banda só conseguiu alcançar notoriedade a partir do terceiro álbum, Sheer Heart Attack (1974). Isso aumentou muito em 1975, com A Night at the Opera, em especial pelo single Bohemian Rhapsody. E explodiu de vez no ano em que conheci tudo feito até então, com News of the Word e suas fantásticas faixas We Will Rock You e We Are the Champions. O interessante era ver como eles passeavam por diversas vertentes do rock, não se fixando em nenhuma e sendo relevante em todas. Sem dúvida, esse modo inquieto e rebelde era decisivo para atrair interesse da mídia e do público. Mas todos eram mesmo cativados pela sonoridade inconfundível.

No início tocavam juntos os colegas de escola Brian May (guitarra) e Roger Taylor (bateria e vocais), com Tim Staffell (baixista). Quando este último saiu do grupo, entraram John Deacon (baixista) e Freddie Mercury (vocais e piano). E o nome Smile foi trocado para Queen, por sugestão do último dos membros, que acabou sendo seu líder – o verdadeiro nome de Freddie Mercury era Farrokh Bulsara. Seu álbum The Works (1984) ainda trouxe dois outros sucessos estrondosos, que foram Radio Ga Ga e I Want to Break Free. A última turnê da banda foi em 1986. Mas, um ano antes, realizou uma das performances mais espetaculares do evento Live Aid, ocorrido no Wembley Stadium, em Londres, no dia 13 de julho, com presença de 82 mil pessoas. O objetivo era angariar fundos para o combate à fome na Etiópia. Esta apresentação foi reproduzida com absoluta perfeição no filme Bohemian Rhapsody, de 2018.

Chego então na segunda parte do que escrevo hoje: o filme é uma homenagem absoluta, estando a produção à altura dos homenageados. Não por acaso este drama biográfico ganhou quatro prêmios no Oscar 2019, dois deles relacionados ao som – Mixagem e Edição –, um pela Edição de Imagem e também o de Melhor Ator, com Rami Malek impecável como um Freddie Mercury talentoso, contraditório e atormentado. Concorria, mas perdeu para Green Book como Melhor Filme. Mas arrecadou mais de U$ 900 milhões de bilheteria, 18 vezes mais do que o valor investido para a realização. No Globo de Ouro foram ganhos os prêmios de Melhor Filme Dramático e Melhor Ator Dramático.

Freddie Mercury era uma figura humana complexa e, por isso mesmo, interessante. Nascido em Zanzibar em 1946, morou com parentes na Índia durante a infância, onde passou a ter aulas de piano aos sete anos de idade. Em 1964 foi para a Inglaterra com sua família, onde também estudou artes gráficas e design. A carreira na música foi fruto de muita persistência, com algumas frustrações antes do sucesso do Queen. Tímido e avesso a entrevistas, no palco se transformava, com presença performática e muito carisma. Foi casado por alguns anos com Mary Austin, a quem dedicou várias músicas de sua autoria, com destaque para Love of My Life. Bissexual assumido, morreu vitimado por complicações causadas pela Aids, em 1991. A recriação feita por Malek foi tão impressionante que parecia desmentir seu falecimento. E na certa também contribuiu para fortalecer o mito em que ele se tornou.

 2020.05.31

O bônus de hoje traz uma tela dividida entre a realidade e a arte, numa sintonia perfeita da verdadeira apresentação do Queen no Live Aid, com a recriada nos mínimos detalhes pelo filme.

FESTA NOS DOIS LADOS DA VIDA

Se adultos em geral têm imensa dificuldade de entender e enfrentar a morte, como explicar tal coisa para crianças? Pois uma animação surpreendente faz isso, de forma indireta. Se bem que, em tese voltada para o público infantil, ela cai muito bem para jovens de todas as idades. Vi dias atrás e me apaixonei. A Pixar mais uma vez se supera na qualidade de suas produções, em parceria com a Disney. O diretor Lee Unkrich consegue abordar esse tema com leveza e muita poesia, mostrando a importância do afeto para a superação da morte definitiva, que seria o esquecimento. Ao mesmo tempo, valoriza as relações familiares e a vida em comunidade, com muita cor, musicalidade e alegria. Me refiro a Viva – A Vida é Uma Festa (o nome original é Coco), vencedora de dois Oscar de 2018, Melhor Animação e Melhor Canção Original. No México, foi a maior bilheteria de cinema de todos os tempos.

O protagonista da história é o menino Miguel, pré-adolescente numa família fortemente matriarcal. Ele sonha em ser um cantor de sucesso e tem como ídolo Ernesto de La Cruz, morto no auge da carreira, em acidente ocorrido durante uma apresentação. Seus ensaios, com um velho violão, são no segredo de um sótão. A única testemunha é um cão vira-latas completamente desajeitado, que vive pelas ruas próximas, mas que ele alimenta e cuida como se fosse seu. Isso porque a família proíbe qualquer manifestação musical, devido a um trauma que o garoto desconhece. Seu tataravô teria abandonado a esposa com uma filha pequena para seguir o sonho de cantar mundo afora e nunca mais voltou. A família, desde então, se dedica à produção de calçados, geração após geração.

A história se passa numa pequena cidade mexicana, com toda a arquitetura, cores e costumes característicos do país. E tudo acontece quando se aproxima o Dia dos Mortos, que lá corresponde ao que seriam aqui para os católicos o Dia de Todos os Santos (01 de novembro) e o Dia de Finados (02 de novembro), somados os seus significados. A diferença está no fato de que no México as pessoas que partiram são lembradas com saudade mas também com alegria. Não é manifestado sofrimento pela não mais presença física dos entes queridos. Na verdade, o estabelecimento de uma data específica para este fim, em muitos países diferentes, teria sido herança da sociedade celta e fora instituída pelos druidas, pois aquela cultura acreditava na continuação da existência. Então, era normal evocar e homenagear os mortos nos próprios lares e não nos seus cemitérios.

Impedido de participar de um festival na praça da localidade, Miguel termina por acidente indo parar no mundo dos mortos. Neste local a espiritualidade é retratada como uma organização semelhante à terrena, sem a visão maniqueísta de um céu ou inferno. Lá também não existe qualquer espécie de citação religiosa. O que se percebe é a mostra da insignificância da matéria, com os ossos dos corpos sendo como que brinquedos, meros acessórios que não constituem a vida em si. E essa prossegue lúdica e harmoniosa, com um simbólico corredor de pétalas unindo os dois mundos. Assim como o garoto, que também se torna ponte por onde transitam explicações e a retomada de um amor que sempre esteve presente, mas estava arquivado por equívocos.

A canção tema é Lembre de Mim, servindo de elo entre gerações, entre o material e o imaterial, mostrando que o amor entre os familiares não é marca exclusiva da presença física. Ela é o vínculo afetivo que percorre a vida e a memória de todos. Que termina solucionando o dilema entre o partir e o ficar, entre o esquecimento e a lembrança. A construção da história está toda calcada na emoção. E é muito difícil chegar ao final, passando pelas reviravoltas inesperadas que mudam destinos e dão novos significados à existência dos membros da família, sem que a pessoa se comova. As expressões faciais, o uso dos espaços de silêncio, o vigor da narrativa e o delicioso final, tudo constrói uma das melhores animações dos últimos tempos. Que merece mesmo ser apreciada. Convêm conhecer Miguel e deixar que ele nos conduza para novos conhecimentos sobre a realidade da vida.

29.05.2020

Abaixo temos trecho da animação, dublado em português de Portugal, no qual Miguel canta para a bisavó Coco a música Lembre de Mim, de autoria de Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez.