HOJE É O DIA DO ORGASMO
Não se surpreenda com o título, nem trate a afirmação que ele faz como uma obrigatoriedade para toda a população sexualmente ativa, nas próximas 24 horas. Tampouco considere ser essa uma mentira, pois já estamos bem longe do 1º de abril. Na realidade trata-se apenas de uma data comemorativa que existe mesmo, aqui no Brasil. A origem dessa história é a Inglaterra, quase 21 anos atrás – vai atingir maioridade em breve, portanto. Foi naquele país europeu que uma rede conhecida de sex shops realizou uma campanha publicitária, em 1999, visando vender uma ideia além dos seus produtos. Queriam que as pessoas discutissem mais a fundo e seriamente o delicado assunto da satisfação sexual. O slogan foi o sugestivo “Atinja, não Finja” – o que é um tanto machista –, tendo isso acontecido no dia 31 de julho, com o pretensioso desejo de que se repetisse todos os anos na mesma data.
Sabe-se lá como, o vereador Arimatéia Dantas, do pequeno município de Esperantina, no interior do Piauí, tomou conhecimento disso e resolveu propor projeto de lei com algo parecido. Foi assim que os habitantes da localidade passaram a ter oficialmente no seu calendário o 9 de maio, desde 2001, como o Dia do Orgasmo. A escolha da data foi aleatória: simplesmente o dia seguinte à sanção pelo prefeito do projeto que a Câmara aprovara. Desde então são promovidas uma série de atividades públicas – nenhuma prática, ao que se saiba –, em especial palestras sobre o assunto da saúde sexual.
Sexo deveria ser mesmo uma preocupação séria da humanidade, para além de questões morais ou religiosas. É saúde, tanto física como mental. É razão da existência, mas muito mais do que isso. Entretanto, desde aquela história da maçã mordida no Éden – sabemos bem o que Adão mordeu –, que a coisa tomou um rumo raramente saudável e muitas vezes doentio. Para começo de conversa, com a diferenciação entre os gêneros e a outorga de privilégios. Um equívoco, mesmo entre as raras sociedades matriarcais que existiram ao longo da história; muito mais nas predominantes patriarcais. Outras vezes, com a negação de direitos a ambos e tornando o ato apenas um dever reprodutivo, em especial entre cristãos, no Ocidente. O deslocamento do prazer, que deixa de ser algo natural na vida. E, pior ainda, muitas vezes sua associação à culpa.
Entretanto, não há barbárie maior do que a perpetrada contra mulheres em pelo menos 30 países da África e Oriente Médio – mas não apenas lá, existindo casos comprovados também na América Latina, EUA, Austrália e Nova Zelândia, segundo a ONU –, com a mutilação deliberada da sua genitália externa. Um contingente enorme, de milhões de mulheres, tem arrancados seus clitóris e lábios vaginais, em rituais supostamente de purificação. Não é incomum que suas próprias avós e mães as conduzam, ainda meninas, para tal procedimento. A motivação, além de religiosa, seria sanitária, permitindo um “ato sexual mais limpo” a partir de então. Na verdade, existe a estúpida visão de que o clitóris seria um pênis mal acabado, que com o verdadeiro competiria. Ou seja, ele se tornaria uma ameaça à virilidade.
Essa “tradição” é bastante antiga mas andou ganhando um inesperado “fôlego”. Em tribos mais retiradas, o corte é feito com navalhas e facões, sem quaisquer cuidados de assepsia e de redução da dor causada. Com a condenação mundial de tal prática, o que se tem observado é um modo disfarçado de continuar ela sendo feita. No Egito, por exemplo, profissionais da saúde cortam o clitóris superficialmente, com técnicas que reduzem risco de infecção posterior e consequente morte. Seja de que modo for, isso priva a mulher de sentir prazer. Retira dela o direito básico e primário de decidir sobre seu próprio corpo e causa danos psicológicos irreparáveis. Torna dolorosas as relações sexuais e, seguidamente, impede nascimento de bebês em partos naturais – muitas vezes são feitas “costuras” deixando apenas dois pequenos orifícios para a saída da urina e da menstruação.
Levantamento feito pelo Unicef estima que em países como Somália, Guiné, Djibouti, Eritréia, Mali, Serra Leoa e Sudão, entre outros, o percentual de mulheres que sofrem essa violência supere os 90%. Além da miséria e da ignorância, na atualidade estes locais não raro têm em comum o radicalismo político e o uso da religião como mecanismo de controle das populações. Assim, se torna necessário levar a sério os sinais iniciais destes rumos, como a visão de inexistentes “mamadeiras de piroca” e de “kits gay”, a denúncia de uma imaginária ideologia de gênero, a “cura gay”, o impedimento da educação sexual ser ministrada em escolas e a repetição de que “menino veste azul e menina veste rosa”, por exemplo. Todo obscurantismo teve um dia seus primeiros passos.
Quem prefere ver a sexualidade do ponto de vista religioso, que siga fazendo isso. Não é errado desde que se pense que o Criador, seja lá como se conceba ele, não nos faria corpos distintos – no sentido de dois ou mais, não necessariamente diferentes – se não pretendesse que se buscasse a completude. E o orgasmo é manifestação física do êxtase que se pode experimentar emocional e espiritualmente, com essa fusão ou mesmo solitariamente. Portanto, não pode ser pecado. Ao contrário, o orgasmo é divino. Em qualquer dia do ano.
09.05.2020
