JOÃO NÃO ERA DE DEUS

Dezembro de 2018. O programa Conversa com Bial, da Rede Globo de Televisão, consegue uma entrevista exclusiva e surpreendente com a holandesa Zahira Nieleke Zous. A mulher, de modo corajoso, relata os abusos cometidos contra ela pelo (suposto) médium brasileiro conhecido como João de Deus, apelido de João Teixeira de Faria. Foi a primeira de muitas vozes que depois foram então se somando. E todas juntas, com a posterior ação da polícia e do poder judiciário, botaram abaixo um império construído ao longo de 40 anos, em Abadiânia, Goiás. Interessante é que a mesma imprensa, que foi uma das responsáveis pela ascensão vertiginosa de João Farsante, foi a “pá de cal” na sua queda. Finalmente o rei estava nu. A fraude foi desmascarada e o coronelão que mandava na cidade que dele dependia, voltou ao pó antes mesmo da sua morte.

Além da ampla cobertura dada ao caso, ele terminou virando também uma minissérie investigativa de seis capítulos produzida pela Globo e disponibilizada no Globoplay. Falo de Em Nome de Deus, um trabalho muito bem feito, que causa impacto forte pela qualidade da apuração. Nela é criado uma espécie de mapa que apresenta o fenômeno que ele representava para a sua cidade e a região, desnudando também a triste realidade do comércio da fé, com sua capacidade de gerar um lucro enorme mesmo que em um país empobrecido. Ou talvez justamente pelo Brasil ser assim. Um comércio “consubstanciado” em vários exemplos anteriores e em religiões diversas, como os sacos e sacos de dinheiro vivo retirados do Maracanã, por pastores que exploram a fé evangélica.

O homem, pelo que passou a representar em poder econômico, em capacidade de trazer recursos para a população local, dominava não somente a Casa Dom Inácio de Loyola, que havia fundado, como a comunidade inteira, que dele passou a depender financeiramente. Usava para isso uma força que, depois ficamos sabendo, nada tinha de moral. Protegido por uma rede de interesses (e de interesseiros), ele reinava absoluto, acima da lei. Na realidade, ele era a lei e a ordem. Tanto que tentativas anteriores de denunciar crimes e irregularidades, quando feitas em âmbito local, jamais prosperaram.

O João que em tese tinha chaves de acesso à espiritualidade, possuía no máximo as dos aposentos nos quais abusava de suas centenas de vítimas. Mas, para compreender mais a fundo a história toda, uma vez que já se tem o necessário distanciamento temporal, a série televisiva ajuda e muito. Os seis capítulos que a compõem conseguem oferecer um mapa bastante amplo deste fenômeno que avançou pelo país afora e chegou ao exterior. O tsunami midiático que trazia inúmeras celebridades até o “médium”, pessoas públicas que terminavam dando de forma indireta um aval seu, como se tudo fosse verdadeiro.

O importante agora, inclusive e especialmente para os espíritas, é que se aproveite desse fato para fortalecer o entendimento de que doutrina e movimento são coisas distintas. A primeira é o conhecimento filosófico e científico, com consequências religiosas; o segundo é a ação humana que se desencadeia em torno dela, com estrutura física de acolhimento, sendo sujeita à falha. Se torna relevante usar essa crise, que já vai caindo no esquecimento, como uma lição para que não saiam por aí criando “bezerros de ouro” – existem outros, tipo palestrantes “ungidos”, que seguem intocáveis, mesmo com alguns “escorregões” assustadores. Kardec não teria feito isso. Ele exigia – e se exigia – sistemáticas provas antes de aceitar quaisquer fenômenos como reais.  

Relembrando, o bezerro de ouro era um ídolo material que, de acordo com a tradição judaico-cristã, foi criado por Arão no período no qual Moisés se ausentou, subindo no Monte Sinai para receber aqueles que seriam os mandamentos de Deus. Esse João foi tipo isso. E, se não tivesse sido apeado do pedestal, se não tivesse pés de barro como tantos outros “santos”, na certa estaria no time de outras “pessoas de bem e de fé” que a pouco fizeram arminhas com os dedos das mãos. Afinal ele as tinha, as reais, e não eram poucas. A polícia encontrou muitas, irregulares, de origem tão duvidosa quanto a honestidade do então investigado. Também foi comprovado o seu envolvimento com o contrabando de pedras preciosas.

Eu estou revendo Em Nome de Deus. E recomendo a quem ainda não viu, que faça isso. Precisamos estar bem informados sempre, para não endossar o que é indevido; para não “glorificar” o que não merece. A cultura do estupro, bem como a da manipulação da fé – que no fundo é uma espécie de estupro também, mas espiritual – têm que ser de fato combatidas. O que só pode ser feito, em ambos os casos, com a não aceitação da invisibilidade e do silêncio.

30.03.2022

O Bezerro de Ouro simboliza a adoração daquilo que é falso

O bônus de hoje é a música Boa Reza, de Vanessa da Mata. O vídeo é oficial, fazendo parte do seu álbum Caixinha de Música.

DICA DE LEITURA

JOÃO DE DEUS: O ABUSO DA FÉ

Para quem prefere ler ao invés de ver a série que recomendei acima, existe a possibilidade de conhecer detalhes dos fatos através do livro-reportagem da jornalista Cristina Fibe. No texto, ela descontrói o mito em torno do garimpeiro goiano que fundou um centro espiritual, na década de 1970, tornando-se um homem poderoso. E segue sua história do início ao fim, quando terminou denunciado, investigado, preso e condenado por vários estupros.

As informações foram apuradas e checadas com várias viagens da autora até Abadiânia, com visitas a IMLs, delegacias de polícia e tribunais. Também fez um mergulho nas mais de mil páginas de processos criminais que foram sendo acumulados contra ele. Cristina Fibe fez uso da mesma sensibilidade e das ferramentas de quem se especializou na cobertura dos direitos das mulheres. Com isso, ela também dá voz a algumas das mais de 300 sobreviventes dos abusos, em relatos muitas vezes chocantes, mas necessários.

Basta clicar sobre a imagem da capa do livro, que está acima, e ocorre o direcionamento para o site da Amazon, com a possibilidade de compra. Se a aquisição for feita através desse link, o blog será comissionado.

A LÍNGUA, O PÉ, A BARRIGA E O BRAÇO

Sou apaixonado por expressões linguísticas. Aquelas frases que adquirem um significado muito diferente do que os oferecidos pelas palavras que as compõem, caso consideradas isoladamente. Elas são repletas de traços culturais e na maioria das vezes datam épocas e identificam regiões, costumes. São, portanto, demonstrativos de toda uma riqueza cultural. Elas não são ditos populares, porque esses últimos carregam uma conotação moral, uma tentativa de ensinamento (Aqui se faz, aqui se paga). Nem tampouco são como as comparativas, típicas no Rio Grande do Sul (Feliz que nem lambari de sanga). As expressões apenas corrompem o contexto usual, demonstrando a força do idioma.

Hoje cito aqui quatro – ou cinco – delas, que adotam partes anatômicas do corpo humano. A primeira, confesso que nova para mim, mas que apanhei por empréstimo de um texto nordestino. Falo de pagar língua, que significa fazer uma afirmação qualquer, falar alguma coisa e ser pego depois por essa mesma afirmação. Algo como criticar uma postura e terminar adotando ou suportando a mesma; dizer que um vizinho não sabe educar seus filhos e ser surpreendido por atitude igual de um dos seus. Ou um falso moralista que é pego fazendo a coisa que condenava. Já que citei antes os ditados, pode ser o equivalente a um deles: A língua é o chicote do corpo. Um alerta para a imprevisibilidade dos acontecimentos desse nosso mundo, de que é muito perigoso sermos assertivos contra outras pessoas ou opiniões.

Também quero incluir ao pé da letra, sendo que isso não corresponde às serifas que existem em certas fontes que se usa para impressão. Até porque pode ser algo verbal apenas e não impresso ou sequer escrito. Refere o que é exato, preciso, literal. Um modo de interpretação que corresponde ao que tentou ser posto pelo emissor da mensagem, que conseguiu seu objetivo sem qualquer margem de erro ou entendimento equivocado. Com isso sonha quem escreve e quem comenta: que os seus leitores e ouvintes percebam com clareza aquilo que se tentou dizer. O que, convenhamos, não é tarefa fácil. Outro dia prometo falar sobre ficar com o pé que é um leque.

Depois de ter pulado da língua, que estava quietinha lá dentro da boca, até o pé, dou meia volta e paro um instante na barriga, antes de chegar aos braços e ao seu aconchego. Tem barriga fria quem revela um segredo, não sabe segurar uma informação até a hora certa. Sempre lembro da minha filha, quando pequena: todas as segundas-feiras que antecediam o segundo domingo de agosto, ela chegava da escolinha e me contava que durante a semana iriam preparar uma surpresa para os pais, para o dia a eles dedicado. A ansiedade crescia até a sexta, quando ela trazia e já me alcançava cartão e algum presente, porque não suportaria esperar mais 48 horas. O que não era nada ruim para mim, que usufruía daquela atenção e carinho por um tempo muito maior. Ainda sobre essa parte da nossa anatomia, eu poderia ter optado por ter o rei na barriga. Se não for uma soberana grávida, é aquela pessoa que se acha, que dá a si mesma um valor que certamente não tem ou não merece.

Concluo com dar (ou não) o braço a torcer. Essa pode ser usada por quem admite que estava errado e volta atrás, em afirmação, alguma opinião emitida, ideia ou ponto de vista que defendia antes, ou quem nunca aceita a possibilidade de estar errado. O que também me lembra um familiar: meu avô Ulysses Gusmão da Cunha. Era engraçado, porque quando a gente provava que ele estava errado em algo, ele concordava conosco e com a prova, antes de reafirmar a mesma posição anterior. O interessante dessa expressão é que ela atende duas pontas, a que cede e a que não cede; a que enxerga e a que não enxerga algum detalhe da realidade. Algo muito apropriado na política atual, por exemplo.

Mas, nossa língua tem valor e não tem preço, as letras não caminham nem correm – exceto nesses letreiros luminosos de publicidade –, barriga fria não é hipotermia e quem dá o braço a torcer não é masoquista. Por tudo isso, acredito eu, o idioma deve ser um tormento para tradutores menos experientes.

28.03.2022

O bônus de hoje é Não Dou o Braço a Torcer, música do grupo Saco de Ratos. Ele é paulistano, composto por Itamar Assumpção, Felipe Rocha e Mário Bortolotto. Suas letras são consideradas “poeticamente cruas e bêbadas”, sendo as canções tocadas por duas guitarras agressivas que se completam, junto com uma “cozinha rítmica e pulsante”. Costumam retratar a boemia da cidade onde moram.

DICA DE LEITURA

Hoje quero indicar aos meus amigos e amigas uma publicação de fato primorosa. Ela está em oferta de pré venda, na Amazon, por um preço muito em conta. É o livro A OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA DOS NOSSOS SENTIMENTOS. Trata-se de uma graphic novel, apresentada em capa dura, com acabamento fosco e 148 páginas coloridas em papel couché de alta gramatura. Uma obra com apresentação e conteúdo. O roteiro é do premiado escritor belga Zidrou, com os desenhos feitos pela talentosa artista holandesa Aimée de Jongh. Esses são tidos como os quadrinhos europeus mais aguardados do ano.

São personagens Ulisses e Mediterrânea. Ele tem 59 anos, sendo um viúvo que se vê sem rumo e engolido pela solidão. Ela sofre com a morte de sua mãe. De repente, suas rugas parecem mais perceptíveis, as palavras alheias machucam e a idade pesa em seus ombros. Os dois passam seus dias envoltos em melancolia, enquanto tentam fazer as pazes com a realidade. Até que em determinado momento seus mundos se encontram e isso resulta num turbilhão de novas emoções.

Mais do que recomendo. Lembrando que basta clicar sobre a imagem da capa do livro, que está acima, para ser direcionado para a possibilidade de aquisição. Se isso for feito através desse link, o blog será comissionado.