O POLICIAL BUNDA MOLE

Alguns anos atrás, na cidade de Porto Alegre, o desentendimento entre uma senhora e seu vizinho, por alguma coisa banal que havia ocorrido junto à cerca que separava os terrenos de suas casas, terminou com a prisão da mulher, posto que o outro era policial e entendeu estar sendo vítima de desacato. Isso porque no calor da troca de palavras ela o chamou de “bunda mole”. Ofendido, a levou para a delegacia. A coisa depois tomou vulto maior, com acusação de abuso de autoridade, e o caso acabou parando na Justiça. Foi quando o advogado da mulher peticionou ao juiz que fosse determinada uma perícia médica no homem, posto que se ficasse de fato comprovado ter ele flacidez nos glúteos estaria descaracterizada qualquer hipótese de ter havido sequer ofensa e muito menos desacato.

A palavra bunda tem origem africana. Surgiu devido à existência de um grupo de indivíduos, que habitavam as regiões central e sul de Angola, terem por característica uma região glútea mais avantajada, em especial suas mulheres. Eles eram chamados de “bundos”, sendo que pertenciam aos genéricos “bantos”. Os colonizadores portugueses não apenas gostaram muito da anatomia feminina tão diferente das com as quais conviviam na Europa, como também passaram a adotar o termo “bunda” para se referir às nádegas femininas. O termo foi incorporado ao idioma português, chegando também ao Brasil – juntamente com o gosto. Por aqui chegou a virar nome de revista. E temos inclusive um concurso de âmbito nacional para eleger uma espécie de Miss Bumbum, o que é um diminutivo que tenta parecer mais carinhoso. Se bem que falar em carinho na região também causa controvérsias e aversões, mesmo quando essas são falsas, hipócritas. 

Aos mais assanhados, explico que abundância, mesmo representando algo que tem grande proporção, tamanho e representatividade, não possui a mesma origem. Essa palavra vem do latim abundantia, referindo-se a uma quantidade grande de qualquer coisa. Em geral, identifica riqueza, prosperidade ou bem-estar. Também fortuna ou algo que se tenha além do que é necessário para viver. O que tende ao excesso: opulência, fartura, abastança e exagero.

Transformações são normais de ocorrerem em todo e qualquer língua. Assim, o substantivo bunda assume-se como adjetivo em algumas situações bem específicas. É onde entra o bunda-mole que, segundo o mestre Aurélio em seu dicionário, designa pessoa covarde ou pusilânime; um bobalhão. O que pode ser simplificado para bundão. Temos ainda o bunda-suja, que o Michaelis identifica como uma pessoa sem poder, um qualquer. Também a cara-de-bunda, que seria como fica a expressão facial de alguém diante de situações ou fatos inesperados, assim sem saber como agir ou reagir. Agora, verbos também foram criados a partir das transformações vindas com o uso. Desbundar é “rasgar a fantasia”, quase como “pisar na jaca”, mas relativo a excesso em comportamento próprio e não em consumo. É sair do sério. O desbunde se usa talvez principalmente como ficar deslumbrado, extasiado com algo ou alguém. E pode ser ainda “causar sensação”. E bundear, algo menos comum de ser usado, representa vagabundear, sendo uma contração da outra palavra, o equivalente a andar ao léu.

Quanto ao problema entre o policial e sua vizinha, não é exclusividade nossa que coisas assim terminem em tribunais. Outro bom exemplo é o que ocorreu na Flórida, EUA. Três dançarinas foram denunciadas por supostamente estarem “mostrando demais” suas partes íntimas, no exercício de sua profissão em uma boate. O que já não dá para se entender bem, pois provavelmente os frequentadores do local não o procuram para ver freiras. Mas, de qualquer forma, o caso foi parar diante de um juiz. O argumento da acusação foi uma antiga lei do condado que proibia nudez em lugares onde fossem servidas comida e bebida.

A advogada de defesa pediu que o magistrado permitisse que suas clientes mostrassem a dança no tribunal. Ela queria provar que seria impossível serem vistas as partes, conforme alegado. Ele não permitiu, mas concordou que elas apresentassem algum outro tipo de prova. Duas delas não titubearam em, virando-se para o juiz, mostrar o quanto de suas nádegas podiam ou não ser vistas. Fizeram isso levantando os vestidos. Diante de evidência tão evidente, mesmo surpreendido, ele admitiu que as calcinhas estavam de bom tamanho e as absolveu.

Não sei como terminou o caso aqui de Porto Alegre. Lembro apenas que a imprensa divulgou a indignação do juiz pelo fato de causas de tal irrelevância ocuparem tempo e estrutura do judiciário. E a “estrutura” do policial, essa parece não ter sido submetida à prova.

30.05.2023

Foto tirada pelo fotógrafo do tribunal mostra o que ocorreu naquele dia diante do juiz, na Flórida

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O bônus musical de hoje é Mole, com Iza, nome artístico de Isabela Cristina Correia de Lima, cantora, compositora, apresentadora e publicitária carioca. O álbum Dona de Mim, o primeiro que lançou (2018), recebeu indicação ao Grammy Latino, na categoria de Melhor Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa. Neste clipe aqui reproduzido, fica evidente que ela jamais receberia o mesmo adjetivo que o policial porto-alegrense.

FALTA DE ATENÇÃO

Na minha família eu sempre fui tido como alguém um tanto desligado. Mas não em relação a todos os assuntos e todas as situações. Ou seja, eu seria portador de uma espécie de desatenção seletiva. Não estou aqui para discordar, uma vez que admito a existência dessa característica, se bem que sem dar o braço a torcer quanto à intensidade dela. No meu ponto de vista – que neste caso é por óbvio bastante suspeito – as coisas não são assim tão extremas e dramáticas. Se isso for distúrbio, aceito o diagnóstico desde que ele seja seguido ou precedido, tanto faz, pelo adjetivo “leve”.

Estou longe, por exemplo, do que acontecia com o escritor britânico Gilbert Chesterton (1874-1936). Entre tantos outros livros, ele escreveu O Homem Eterno, O que Há de Errado com o Mundo e Tremendas Trivialidades, três que merecem tempo de leitura. Mesmo famoso por paradoxos agudos e por memória prodigiosa, ele tinha lá suas desatenções. Até porque – e isso nem todos sabiam – boa parte da sua reputação se devia à agenda que era cuidadosamente feita pela sua esposa, Frances Blogg. Era função dela todos os dias providenciar um roteiro detalhado das atividades do marido, de tal forma que ele conseguia cumprir com absoluto esmero os seus afazeres e compromissos.

Pois não é que uma vez o senhor Chesterton pegou um trem perto de sua residência, que ficava em Birmingham e foi para Londres, mas ao chegar à capital se deu conta de que não levara consigo a sua agenda. Foi o suficiente para que não lembrasse o que tinha ido fazer por lá. Então, tomou a iniciativa de enviar de imediato um telegrama para a esposa: “Estou em Londres e não lembro o que vim fazer aqui. Pode me dizer que compromisso tenho e para onde devo ir?”. Ficou na agência de correios deles, aguardado pela resposta, que não tardou: “Gilbert, você saiu para comprar tabaco. Por favor, volte para casa imediatamente. E, para constar, você mora em Birmingham”.

Para constar, saibam todos que eu sempre soube onde moro e que nunca saí para comprar cigarros, uma vez que não fumo. Também não me enquadro naquele grupo de pessoas que procuram os óculos pela casa, sem se dar conta de que eles estão no seu rosto mesmo. Mas em muitas oportunidades tento descobrir onde deixei meu celular ou as chaves, com tudo bem na minha frente. Já saí com camiseta do avesso, mas nunca com um pé de calçado de cada cor. Entretanto, sendo esse um momento de confissão, preciso contar que uma vez participei de um concurso, fui muito bem na primeira etapa da seleção, tinha chances de obter a vaga em disputa e esqueci de ir na segunda. Já errei o dia de uma palestra que desejava muito assistir, indo uma semana antes. Estranhei estar sozinho na sala – que não era perto da minha casa –, até ser avisado por uma funcionária de que nada iria acontecer ali naquela data. E também consegui a proeza de não embarcar rumo a Florianópolis, mesmo estando no aeroporto na hora marcada. Claro que esses três últimos exemplos autorizam as pessoas a removerem a palavra “leve”, que pedi lá atrás fosse acrescentada à minha distração. Só espero que elas se distraiam lendo e esqueçam do meu pedido.

Albert Einstein, quando encontrava colegas professores ou um grupo de alunos no campus da Universidade de Princeton e parava para alguma conversa, em geral perto do meio-dia, que é quando se deslocava entre os prédios, ao final perguntava de que lado ele próprio estava vindo antes. Dependendo da resposta que recebia ele sabia se já havia ou não almoçado, considerando a localização do restaurante universitário. E uma amiga nossa, pessoa muito querida e para lá de equilibrada, uma vez ligou para a Olinda e estava relatando uma série de situações, quando comentou estar muito preocupada porque havia perdido seu celular. Perguntada de onde estava falando, confirmou estar na rua. Assim, pode ser alertada que deveria estar usando o celular que pensava ter perdido.

A verdade é que desatenções em geral são devidas apenas ao estresse ou a alguma característica pessoal, não sendo necessariamente uma questão patológica – sobre TDAH vou escrever em outra ocasião. Não sei o que há de normalidade ou não nisso, mas para mim é muito comum estar com mais de uma preocupação simultânea ou ter vários pensamentos se acotovelando. Então, o foco passeia do mesmo modo que eles circulam em minha cabeça. Não é por acaso que escrever, além de ser minha profissão, também serve como terapia. Publicar aqui a cada 48 horas é algo que me auxilia, com a disciplina necessária. Assim como o fato de ter liberdade para definir sobre o que escrever. Isso é um modo de manter o foco, podendo ter ao mesmo tempo muitas perspectivas diferentes; uma forma de me distrair e assegurar atenção ao mesmo tempo. Vida que segue.

28.05.2023

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O bônus musical de hoje é Distração, com Zélia Duncan.