O ETARISMO

Quando se fala em preconceito, lugar comum é as pessoas sensíveis ao assunto associarem de imediato a palavra com questões de etnia, raça, gênero ou orientação sexual. Afinal, são sem dúvida essas as mais comuns manifestações dessa postura odiosa. Entretanto, existem outros tipos, que mais dificilmente são percebidos. Um deles é o etarismo. Mas, antes de falarmos sobre esse conceito, vamos tentar esclarecer a diferença que existe entre dois dos anteriormente citados, que não raras vezes são confundidos. O preconceito contra raça, o racismo, refere aversão a determinadas características fenotípicas dos tipos humanos, em especial cor da pele. O racista discrimina negros, sem uma única razão plausível para isso – como se fosse possível existir uma sequer. Já o preconceito contra etnias se refere a fatores culturais, como nacionalidade, religião, língua e tradições de grupos humanos. Um outro tipo de intolerância, de falta de respeito e capacidade de entender o que não é semelhante a si mesmo.

Voltando ao etarismo, esse se baseia na crença irracional de que todas as pessoas, sem exceção alguma, são limitadas em função da sua idade. É subestimar a capacidade de jovens, apenas porque se entende que eles ainda não têm condições para determinadas ações, pelo fato de que, na maioria das vezes, essas são atribuídas a adultos. Ou ainda, no extremo oposto, achar que a pessoa que envelhece perde todas as suas capacidades, irremediavelmente. É, por exemplo, não dar trabalho aos jovens alegando apenas falta de experiência. Ou negar colocação aos que têm mais idade, acreditando que jamais teriam a produtividade que é esperada. Assim, o etarismo – também chamado de ageísmo – é toda a forma de estereotipia fundada numa discriminação de idade. Pode afetar a vida das pessoas de diversas formas, mas como citei acima é cruel especialmente no ambiente de trabalho.

Em 2015 o japonês Hidekichi Miyazaki, com 105 anos de idade, bateu o recorde mundial para a categoria sênior, fazendo no atletismo 100 metros rasos em 42 segundos. Tudo bem que atletas mais jovens fazem isso em tempo quatro vezes menor, mas aposto que a grande maioria das pessoas sedentárias com metade da sua idade não conseguiria. Na época ele brincou, desafiando Usain Bolt para um “pega”. Um ano antes, sua compatriota Mieko Nagaoka, de 100 anos, foi a primeira pessoa com essa idade que nadou 1.500 metros livres em piscina de 25. Eu, que não sei nadar, só poderia aplaudir. Com uma habilidade impressionante, aos 81 anos a jogadora Doris Self bateu o recorde no jogo eletrônico Twin Galaxies, acumulando 1.112.300 pontos no modo Tournament, que é a mais difícil configuração do tal jogo. Dorothy Davenhill Hirsch, de 89 anos, foi uma desbravadora do Polo Norte, a bordo do navio russo Yamal, um quebrador de gelo. O professor doutor alemão chamado Heinz Wenderoth conquistou esse título acadêmico com 97 anos. Fez isso apresentando um trabalho instigante sobre aspectos biológicos de células na morfologia e fisiologia da vida marinha primitiva.

Eu concordo que estou ilustrando o texto aqui com exceções, não com a regra. Mas não se precisa ir ao limite para entender que afirmações “definitivas” têm enorme probabilidade de não encontrarem eco em todas as pessoas. Por que não confiar, ao menos no ambiente de trabalho, naqueles que são os improváveis? Tem muita gente jovem que pode surpreender com uma visão nova, inovadora mesmo, acelerando processos “consolidados”. Tem muita gente madura que pode mostrar um jeito esquecido, de tratar pessoas e resolver problemas, que anda sepultado sob o manto da necessidade compulsiva da tecnologia. A pressa de hoje em dia, mesmo não sendo inimiga da perfeição, pode se tornar avessa ao capricho, afetando resultados.

A comédia norte-americana Um Senhor Estagiário, com Robert De Niro, Anne Hathaway e Rene Russo, conta a história de um viúvo de 70 anos, aposentado, que aproveita a oportunidade de trabalhar como estagiário sênior em uma empresa de moda. Recebido com enorme desconfiança, ele termina conquistando os colegas mais jovens, incluindo sua chefe direta que não o desejava lá, graças à sabedoria e ao senso de humor que a idade o ajudou a desenvolver. Merece ser visto. O dinamismo e a serenidade não são excludentes. E velho de verdade é o preconceito.

30.08.2021

No bônus duplo de hoje, primeiro o trailer oficial da comédia Um Senhor Estagiário. Depois, a música Orgulho e Preconceito, de Lulu Santos. Essa se refere à outra forma de desrespeito, fazendo referência ao julgamento alheio quanto ao direito das pessoas amarem quem bem lhes entende. Mas ele ilustra bem nossa necessidade de rever conceitos.

A HERANÇA MALDITA DE RENATO

Já usei esse espaço algumas poucas vezes para escrever sobre futebol. Citei um livro de escritor inglês sobre o tema, abordei o gol de mão do Maradona, a história do “Vovô” Rio Grande, a volta do Juventude à elite dos clubes brasileiros e até lembrei do singelo jogo disputado durante o intervalo das aulas no início da adolescência. Nunca antes o Grêmio foi assunto, mesmo todas as pessoas que me conhecem sabendo que eu sempre fui gremista. E faço isso agora justamente com uma opinião que tem tudo para ser polêmica: acredito piamente que o terrível momento pelo qual o time passa nesse momento vem de uma herança maldita deixada por Renato Portaluppi, que é um dos maiores ídolos da história do clube, depois de ter ficado mais de cinco anos como técnico. O que foi tempo demais.

Para esta sua última passagem, mais uma vez ele chegou com a necessidade de recuperar posições na tabela de um Brasileirão no qual não se estava bem. Foi em 2016 e, mais do que fazer isso, ainda conseguiu nos dar o quinto título da Copa do Brasil. No ano seguinte, uma glória maior ainda, com a conquista da terceira Libertadores da América. Não se pode esquecer, no entanto, que ele recebera um grupo extremamente bem treinado por Roger Machado. E que contava, coincidentemente, com o auge da forma técnica e física de Maicon, Douglas e Luan, no meio de campo. Que consolidava uma dupla quase perfeita na zaga, com Geromel e Kannemann, ambos à frente do incomum Marcelo Grohe. E ainda havia a dedicação de Ramiro, a explosão de um Pedro Rocha em alta. Na soma dos dois anos, também Wallace, Arthur – que Renato resistiu muito até aceitar ter nível sobrando para ser titular – e o centroavante Lucas Barrios em boa fase.

Depois disso, duas coisas sustentaram Renato no cargo: sua excelente relação pessoal com o presidente Romildo Bolzan e vencer Grenais aos borbotões. Títulos, só vieram os regionais. Sonhando com os atalhos das copas, já que vencera duas com relativa facilidade, ele sempre decidia abandonar a disputa por pontos corridos do campeonato nacional tão desejado pela torcida. Conseguiu a proeza de poupar todos os titulares, certa ocasião, na primeira rodada do certame que é de pontos corridos. Isso porque convencia a direção de estar sempre certo. E, entre as muitas frases feitas que repetia nas entrevistas que em geral beiravam à mesmice temperada com arrogância, se vangloriava de ter controle sobre o grupo, estar lapidando jovens para o lançamento e ser um exímio recuperador de jogadores com carreira no momento desacreditada. Destas três, apenas a primeira das afirmações era parcialmente verdadeira. Aos mais velhos, se impunha por ter-lhes oferecido de fato oportunidades muitas vezes já não esperadas; aos mais novos, pela sua figura histórica transformada em estátua na entrada da Arena.

Sobre recuperar atletas, teve sucesso com os laterais Léo Moura, que era um excelente jogador, e com Cortez, que sempre foi mediano. Nenhum outro pode ser incluído, numa análise séria. Por outro lado, em função da criação desse mito, convenceu Bolzan a trazer a peso de ouro figuras como Tardelli, Thiago Neves e Robinho, de quem só pode recuperar e muito as contas bancárias. O Grêmio gastou horrores e não houve retorno técnico algum. Renato também deu o aval para a troca de Marinho pelo zagueiro David Braz, com o Santos; e com o São Paulo, do centroavante Luciano pelo quase inútil Everton, que segue por aqui sem atuar e ganhando elevado salário. Foram duas decisões desastrosas. Mais dinheiro posto fora. Enquanto isso, jovens talentosos que o técnico jurava estar observando em treinos – há quem diga que isso ele nem dava, preferindo sempre os “rachões” – se acumulavam, chegando numa idade quase limite sem oportunidade real. Para muitos sobrava a desesperança e o desejo de ir embora. Tetê se queixou e terminou indo fazer sucesso na Europa, sem nunca ter feito estreia com a camiseta tricolor. Diego Rosa foi outro talento que saiu direto da base para o exterior.

Durante a Copa do Brasil de 2020, com Breno e Chapecó, dois goleiros jovens que sobravam nos treinamentos, ele revezava outros dois insuficientes para a camisa número um. E ainda conseguiu “queimar” o razoável, tirando sua titularidade de surpresa, nos dois jogos decisivos, para colocar o pior entre ambos. Este falhou nos três gols que o time sofreu, levando o clube a perder prestígio, dinheiro e troféu. Com isso, o vestiário já demonstrava estar “rachado”. Havia – e talvez ainda exista – dois grupos, formados pela faixa etária. Para piorar tudo, os mais hábeis entre os veteranos foram ficando com sérias limitações físicas. Geromel e Kannemann se alternavam, quase nunca atuando juntos, pois geralmente ao menos um deles estava machucado. Maicon se tornou uma estrela cadente, perdendo brilho no Departamento Médico. O time conseguiu ser eliminado na pré-Libertadores e Renato, desgostoso com as justas críticas, terminou saindo. Demitindo-se ou demitido, nunca ficou claro. Mas a verdade é que essa relação deveria ter terminado muito antes, para que o caos previsível devido ao desgaste evidente não tivesse se estabelecido.

Seu sucessor, também por ordem da direção, prometeu promover uma renovação extrema – que até seria perigosa. Não conseguiu cumprir e não permaneceu. Com jovens muito técnicos, porém pouco experientes, desentrosamento, problemas físicos, insegurança, surto de Covid, falta de lideranças que pudessem acalmar o ambiente e recuperar as fraturas no grupo, o time desabou no desempenho e na tabela do Brasileirão. Foi para a zona de rebaixamento, onde jamais poderia estar, pelo seu tamanho e história. Hoje com outra lenda no comando, busca desesperadamente uma recuperação. Contratações pontuais foram feitas, mas o tempo ainda é curto para se ver resultados. Felipão tenta colar os cacos, enquanto propõe uma alteração radical no tipo de jogo dos últimos tempos: sai o toque de bola, o jogo propositivo, e volta a “casinha fechada” e a espera do erro do adversário para marcar no contragolpe. O que nem sempre é possível, normalmente arriscado, ampliando a angústia da imensa torcida, podendo ser ainda insuficiente. Não será nada fácil e sim provavelmente uma tarefa demorada juntar todos os pedaços da estrutura anterior. O que talvez ainda nem venha com o técnico atual.

Renato foi ser feliz no seu Rio de Janeiro, treinando o Flamengo. Talvez lá se contentando – ao menos por enquanto, antes do seu ego voltar a exigir mais – em ser apenas técnico. No Grêmio ele era uma espécie de diretor de futebol, quase um vice-presidente. E o clube só não se enterrou em dívidas pela austeridade do presidente Bolzan e pelo fato de ser um ótimo vendedor de ativos. O que não se soube fazer, nos últimos tempos, foi repor as peças perdidas com o mesmo talento. No pátio do antigo Estádio Olímpico estão estacionados ônibus da Carris – enquanto nosso prefeito não a vende ou liquida – e na Arena ficaram estacionados alguns bondes, aqueles que Portaluppi garantia saber recuperar. Mas que não levou com ele para o rubro-negro carioca. Porque nunca foi bobo.

28.08.2021

No bônus de hoje o Hino do Grêmio, de autoria de Lupicínio Rodrigues. Ele foi adotado no cinquentenário do clube e, nessa gravação histórica, vários artistas, na sua maioria gaúchos e todos eles gremistas, o cantam reverenciando também o antigo Estádio Olímpico (1954-2012).