COZINHAR CANTAROLANDO
Minha mãe tinha o hábito de cantarolar enquanto cozinhava. Quando estava fazendo outras coisas pela casa, também. Hoje em dia eu fico pensando no que leva alguém a ser aparentemente tão feliz, realizando essas atividades cotidianas, todas repetitivas, não valorizadas nem remuneradas. Não vou saber a resposta, pelo menos não a versão que ela poderia me dar, se ainda estivesse entre nós. Mas mantenho, por ter observado isso, a certeza de que a rotina lhe trazia mais satisfação do que tédio. Talvez por haver naturalizado tudo aquilo como sendo sua obrigação, de tal forma que cumpria todos os rituais domésticos com rigor e sem reclamações. Outras coisas a incomodavam na vida, mas ser dona de casa e mãe em tempo integral, certamente não.
Dona Vicentina nasceu nos anos 1920, foi mãe na década de 1940 e avó nos anos 1960. Cumpriu à risca um destino e talvez só tenha provado um pouco o sabor da liberdade depois de viúva, o que ocorreu em 1977. Foi quando precisou assumir as rédeas da própria vida e passou a tomar mais decisões, no dia a dia, sem o compartilhamento obrigatório. Ainda ouvia os filhos, muitas das vezes, mas não como sendo algo determinístico, como antes era com seus pais e depois com o marido. Ganhou asas mais fortes, alçou alguns voos. Mesmo assim, continuou com muito daquilo que a educação condicionante de antes incutiu nela.
Outra coisa incrível que aconteceu é que, a partir dessa “libertação” pessoal, ela também aprendeu a liberar mais os outros. Fui o maior beneficiado com essa mudança, por ser o filho mais novo e aquele que ainda residia com ela, nessa fase. Perdeu um pouco de força essa coisa de ser superprotetora. O melhor exemplo talvez resida no fato de ter simplesmente concordado, apesar da evidente surpresa, quando um Solon adolescente disse que resolvera ir até o Rio de Janeiro, de carona. Lá seria acolhido na casa de amigos, também gaúchos, para passar umas férias bem diferentes das habituais. Recomendou mil cuidados, é lógico. Mas convém lembrar que celulares não existiam, que orelhões eram devoradores de fichas nada baratas para ligações interurbanas, de tal modo que sinais de vida seriam dados apenas por cartões postais postos no Correio, em algum lugar no caminho. Se houvesse chance para tal. Os tempos e os perigos eram outros, evidente. Mas foi um avanço totalmente inesperado.
Muito anos depois, eu já tendo passado dos 40 anos ela continuava com o hábito de ir até a janela, depois da despedida formal em alguma visita, para ficar olhando a gente se afastar. O carro dobrava a esquina e ela continuava lá, como uma sentinela. Antes disso, na porta e depois dos abraços, sempre ocorriam as recomendações de praxe, a sugestão de todos os cuidados possíveis. Ela estaria de aniversário, nesta terça-feira. Há muito eu já não ouço suas manifestações verbais de proteção e afeto. Mas ainda tenho vivo na memória o som da sua voz, as canções que acompanhavam o cheiro da ótima comida.
16.08.2021

No bônus musical de hoje, Ana Vilela nos oferece uma adaptação de Trem-Bala, de sua autoria. A letra foi mudada, tornando-se uma paródia, feita para homenagear a sua mãe.