O BUTANTAN E OS TANTÃS

O Instituto Butantan, que fica no bairro de mesmo nome, na cidade de São Paulo, nunca foi tão comentado quanto nos últimos meses. Isso porque concentrou a maior esperança brasileira na produção de uma vacina contra o coronavírus, em eficiência e em número suficiente para imunizar toda a nossa população. Uma luta que ele está vencendo, graças a uma parceria com laboratório chinês, mas que está ainda longe do fim. Ele é um centro de estudos biomédicos com excelência reconhecida em todo o mundo. E nasceu devido a uma conjugação de fatores, a partir de um grave problema de saúde pública. Foi em 1898, quando imigrantes italianos buscados para substituir mão de obra escravizada enfrentaram um surto de peste bubônica, na cidade de Santos, onde ficavam aguardando destinação.

Um grupo de médicos foi enviado pelo governo, na busca de um enfrentamento adequado para o problema: Adolfo Lutz, Vital Brazil, Emílio Ribas e Oswaldo Cruz. Constatada a necessidade de criação de um laboratório para a produção de soro antipestoso, foi adquirida a Fazenda Butantan e nela montada a estrutura, que ficou vinculada ao Instituto Bacteriológico, atual Instituto Adolfo Lutz. Em 1901 ele se tornou autônomo, com o nome de Instituto Serumtherapico. Mas desde sempre foi conhecido pelo nome atual, uma vez que a população o identificava pelo local onde foi instalado. Hoje é um complexo que além das unidades produtivas de fármacos tem também museus, parques, um serpentário, biblioteca e até um hospital. Lá são produzidos, além de várias vacinas, soros imunoterápicos para uso em picadas de cobras, escorpiões e aranhas.

Historicamente, o Butantan desenvolveu os primeiros soros antiofídicos do mundo. E foi responsável pela comprovação de que a febre amarela era transmitida pelo mosquito Aedes aegypti – a primeira palavra vem do grego e a segunda do latim, significando “o odioso do Egito”, de onde se conclui não ser de hoje o esforço de atribuir culpa geográfica pelas pragas que assolam a humanidade. Ainda quanto a nomenclaturas, Butantan vem da aglutinação de duas palavras do tupi-guarani. Bu, assim como ibi, são duas expressões que significam terra; atã ou tã, significam duro. A duplicidade do adjetivo forma um superlativo: dura mais dura, igual a duríssima. Ou seja, identificava um local de terra muito dura.

O tantã é um instrumento de percussão tipicamente brasileiro. Uma espécie de tambor de formato cilíndrico ou afunilado, como o atabaque. Pode ser feito de madeira ou alumínio, tendo pele em apenas uma das suas extremidades. Algumas pesquisas apontam que ele foi criado no Rio de Janeiro, por um sambista chamado Sereno. Isso teria acontecido no final da década de 1970, em rodas de samba comuns nos tradicionais bairros da Zona Norte. O seu diâmetro pode variar, conforme interesse e uso. Os mais comuns são de 12 polegadas, que chamam de tantanzinho, e de 14 polegadas, esse último tendo um som mais grave, semelhante ao do surdo. Trata-se de um instrumento de marcação, que deve ser usado com as mãos.

Tantã também é como se chama, em algumas regiões, aquela pessoa “que não bate bem”. Talvez venha a expressão da mesma dureza da terra citada acima, agora passada para a cabeça. Se bem que cabeça dura serve mais para teimoso, então muito mais apropriado seria justamente miolo mole. Enfim, talvez até fosse possível atribuir essa característica a quem rasga dinheiro – sendo seu, porque público não importa gastar –; jura que a Terra é plana; a quem ri da dor alheia e da morte; acredita que uma vacina pode instalar um chip no corpo do vacinado; enxerga uma realidade que só ele mesmo vê; a quem entende psicopatia como qualidade pessoal e não doença; e ainda combate estruturas de pesquisa, de ensino, de conhecimento avançado, estilo o Butantan, reduzindo suas verbas justo numa época de pandemia. Alguém assim poderia ser chamado de tantã – não fosse essa uma comparação injusta com pessoas que passam por sofrimento psíquico –, mas outros termos poderiam ser adotados, correndo-se o mesmo risco de imprecisão.

Sinônimos com certeza não faltam, podendo ser escolhidos a gosto do freguês. Alheio, alienado, alienista, aloprado, aluado, alucinado, biruta, delirante, demente, desajuizado, desatinado, desequilibrado, desmiolado, desvairado, doido, insano, louco, maluco, maluquete, maníaco, mentecapto, néscio, pirado, temerário, tolo, tonto e tresloucado, entre outros. Talvez em breve possamos acrescentar mais um, que seria a adoção de um nome próprio passando a exercer a função de adjetivo, quando nos debruçarmos sobre a história recente. Afinal, nesse Brasil onde falta lucidez e governo, jamais faltou criatividade.

30.01.2021

Fachada do prédio principal e histórico do Instituto Butantan

No bônus musical de hoje, Balada do Louco, interpretada por Rita Lee. A composição é dela, em parceria com Arnaldo Baptista. A gravação original foi no álbum Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets, de 1972.

RELAÇÕES POLIAMOROSAS

Uma série televisiva produzida pela Rede Globo nos anos 1980 foi precursora na abordagem de um assunto que, hoje em dia, tem recebido muito maior destaque, se não nas artes certamente na vida cotidiana das pessoas. Mesmo sem ter deixado de ser um tabu. Armação Ilimitada fez sua estreia dois meses após o último presidente militar ter apeado do poder e trazia a história de uma relação mantida entre três pessoas. Os amigos Juba (Kadu Moliterno) e Lula (André de Biase) conviviam com Zelda Scott, uma jornalista vivida por Andréa Beltrão. Este arranjo amoroso era apresentado de uma forma muito menos discreta do que se poderia imaginar, considerando a época e a censura que ainda estava vigente, apesar de bem mais branda.

A transgressão era como uma vingança contra o controle extremo até então exercido. Um sopro de liberdade em textos que eram escritos por várias mãos, com revezamento a cada episódio, mas a maioria deles por Antonio Calmon e Patrícia Travassos. A linguagem conseguiu fazer uma mescla bem interessante, com traços trazidos dos quadrinhos – balões com símbolos gráficos substituíam o som, quando algum palavrão escapava –, filmes de ação e videoclips. A ideia original foi proposta pelos dois amigos que eram surfistas na vida pessoal e trouxeram isso para seus personagens, assegurando cenas com muita adrenalina. Mas o bom humor também era marca registrada. Havia inclusive preocupação em dar uma pitada de temas sociais mais relevantes, como o trazido com a presença de Bacana, um menino órfão vivido por Jonas Torres, que termina sendo adotado pelo trio.

O tema das relações poliamorosas hoje causa menos estranheza porque elas se tornaram uma realidade maior do que se pensa. Apesar destas continuarem sendo, em sua imensa maioria, mantidas no sigilo exigido pela sociedade. O recurso do avestruz, que coloca a cabeça no buraco: se eu não estou vendo, não existe. Mas, antes de explicar que existem vários tipos de arranjos que se enquadram nesse guarda-chuva, temos que lembrar que mesmo os laços monogâmicos passaram por uma profunda reformulação, nas últimas décadas. Eles se atam e desatam, na medida em que a possibilidade do divórcio foi assegurada em lei. Essas pessoas divorciadas casam outra vez, moram juntas, têm filhos de relações anteriores, geram e adotam outras crianças. Também passou a ser realidade casamentos entre pessoas do mesmo gênero, tendo essas últimas também o direito à adoção. Ou seja, as definições de família e de relacionamentos estão mais elásticas e esse é um fato contra o qual não adianta o conservadorismo e mesmo a fé religiosa se indisporem e levantarem. Porque a reação é inútil.

Em todas as sociedades, não importa local e época, mesmo com todo o impedimento legal e ameaças de punição, os limites do matrimônio nunca impediram mulheres e homens – esses, muito especialmente – de adotarem a infidelidade, clandestina ou não, como forma de escapar da monogamia. E a poligamia (um homem casar com mais de uma mulher) ou a poliandria (uma mulher casar com mais de um homem), que são oficialmente aceitas em alguns países, não resolvem isso porque favorecem um gênero apenas, permanecendo a relação de domínio e de controle. Não pode haver ainda a confusão entre formas de poliamor e relacionamentos abertos. Esses últimos se caracterizam pela liberdade consentida de ambos os membros do casal iniciarem e manterem intimidades com outras pessoas, mas de modo individual e privativo. Uma espécie de salvo conduto para a prática de sexo extraconjugal sem a tradicional culpa e preservando a dimensão amorosa como o parceiro original.

No poliamor três ou mais pessoas, não importa de que gênero, têm uma ligação que vai muito além do sexo, sem o excluir. Ou seja, estabelecem vínculos afetivos, românticos e inclusive de responsabilidade social. São características básicas deste envolvimento a consensualidade, a não exclusividade e a equidade. O termo trisal – como contraponto ao tradicional casal – identifica o grupo quando formado por dois homens e uma mulher, ou por duas mulheres e um homem. Mas há situações com quatro ou cinco parceiros. Pode haver coabitação ou não. E os arranjos são limitados apenas pela imaginação, o desejo e o afeto. Seja qual for a relação proposta e aceita, ela requer muita coragem e os envolvidos na certa adorariam não enfrentar julgamentos e preconceito.

O poliamor já é um movimento organizado e mais visível nos EUA, havendo casos desde os anos 1950, assim como na Alemanha e no Reino Unido, entre outros locais. No Brasil chegou-se inclusive a estabelecer jurisprudência reconhecendo as relações poliamorosas, com o respeito a suas implicações legais. Em 2012, na cidade de Tupã, interior de São Paulo, foi lavrada a primeira escritura pública de união estável entre três pessoas. Várias outras se seguiram, até 2016, quando o Conselho Nacional de Justiça, atendendo pedido da Associação de Direito de Família e Sucessões, suspendeu essa prática. E não existe decisão final da Justiça sobre tal situação. O que não a impede de acontecer, nem muito menos silencia discussões sobre essa realidade. Tem acontecido inclusive encontros, em âmbito nacional, congressos nos quais os adeptos buscam apoio para a defesa de seu direito de viver como entendem correto. Ninguém precisa ser favorável a isso e os casais tradicionais sempre vão continuar existindo. Mas a intimidade de ninguém deveria ser problema para terceiros, sendo a estranheza mais fruto da hipocrisia do que qualquer outra coisa.

28.01.2021

O bônus de hoje vem com Estrela Leminski e Téo Ruiz, apresentando o vídeo clip oficial de sua música Poliamor. Ela é escritora e compositora, filha dos poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz; ele é compositor e produtor muito atuante. Ambos são paranaenses e têm mestrado em Música pela Universidade de Valladolid (Espanha).