VER DO ALTO, OLHAR DE LONGE

A maioria de nós talvez já tenha tido a oportunidade de assistir, uma vez que seja, o programa Brasil Visto de Cima. Assisti alguns episódios na TV Cultura, mas acho que outros canais também o transmitem. Mostra sempre localidades em sobrevoo, de ponta a ponta no território nacional, destacando as belezas naturais, arquitetura e detalhes da sua história. Um estímulo e tanto para o turismo doméstico, porque não tem como não ficar com vontade de ver tudo aquilo de perto. Evidente que apenas os aspectos positivos são retratados. Isso até pode ser compreendido, uma vez que existem interesses comerciais envolvidos. Somente vez por outra comentam, mesmo assim de passagem, coisas como poluição das águas. Essas não podem ser editadas, porque as manchas causadas por esgoto e rejeitos industriais não desaparecem dos nossos rios e do mar, por passe de mágica. Mas as manchas sociais, tipo favelas, barragens que se rompem e outras mais, essas somem da paisagem sempre. Não se pode mostrar uma praia, sem a imagem do mar, mas é possível mostrar áreas urbanas evitando os bairros pobres.

Pois dias atrás a amiga Sandra Fagundes me enviou um link que me conduziu a conhecer o trabalho do norte-americano Johnny Miller. Em 2016, na Cidade do Cabo, África do Sul, ele tirou uma fotografia usando drone e ela viralizou nas redes sociais e ganhou destaque na imprensa. Mostrava o contraste entre duas áreas que faziam divisa, fisicamente, mas revelavam um distante contraste social entre elas. De um lado, as mansões de Lake Michelle, construções milionárias à beira de um lago, onde vive uma minoria branca; do outro lado, barracos feitos de sobras de madeira e de lata em Masiphumelele, favela com 38 mil habitantes negros empilhados, sem infraestrutura alguma. Há estimativas que 35% desses desassistidos estejam infectados com HIV ou tuberculose.

A repercussão desse trabalho incentivou o autor a criar o projeto Unequal Scenes (Cenas Desiguais), com o qual já percorreu sete países, sempre para retratar o mesmo problema. O oitavo está sendo o Brasil, onde chegou em outubro do ano passado. Por aqui, usando drones e também helicóptero, fez imagens no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Salvador. A segregação capitalista fica evidente na distribuição dos espaços urbanos e na arquitetura das suas construções. É uma denúncia visual, um alerta para a realidade de uma composição explosiva que estamos construindo, em todo o mundo. Uma violência de tal forma gritante que, mais cedo ou mais tarde, não terminará bem.

Com 39 anos, Miller se desfez do apartamento que possuía na África do Sul para percorrer o mundo, como fotógrafo e ativista. Agora trabalha também com o ONU Habitat, uma agência especializada das Nações Unidas que se dedica a promover regeneração de cidades, para que se tornem social e ambientalmente sustentáveis. E se engana quem pensa que essa desigualdade espacial ocorre apenas em países do chamado Terceiro Mundo. Nos Estados Unidos ele encontrou situação muito semelhante, estando lá esse processo de desagregação social em plena expansão.

Com sua formação e a experiência que esses cinco anos de viagens lhes trouxeram – visitou também Índia, México e países africanos –, Miller concedeu recente entrevista à BBC News, na qual ousou dar sugestões para o enfrentamento da desigualdade que agora conhece tão de perto. Segundo ele, se tornam primordiais medidas como bolsas sociais, que venham agregadas a programas públicos de geração de emprego e renda, além de melhorias substanciais nos sistemas de transporte e de saúde pública. O que entende ser possível apenas a partir da taxação dos mais ricos, com destinação garantida para esses recursos. E, ao se referir ao Brasil, lamentou que nos últimos anos estamos tomando justamente o caminho oposto a esse.

No caso do programa televisivo brasileiro, são vídeos com narração; neste outro são fotografias que, tomara, não nos deixem estáticos. Em ambas as situações são vistas do alto. E, ao menos no que se refere ao trabalho do norte-americano, a desigualdade seguimos olhando de longe. O que é um erro terrível, que cometemos como se esse fosse um assunto que não nos diz respeito. Mas basta olhar as fotos – elas podem ser encontradas no Instagram – que se nota o quanto isso está perto de todos nós.

14.01.2020

Um banhado e um muro, estrategicamente construído, separam moradores ricos e pobres na Cidade do Cabo

No bônus de hoje, uma música que fala da vida nas comunidades cariocas, com outra visão que não a nossa. Há um ritmo muito próprio em Favela, canção gravada pela cantora e compositora norueguesa Ina Wroldsen, em parceria com o goianiense Alok. Foi lançada em 2018, tendo sido inspirada em documentário feito sobre as mulheres latino americanas.