EU QUERIA SER GOG

Nunca morri de amores por música sertaneja, rap, funk, hip-hop e assemelhados, mesmo reconhecendo que todas têm seu público e que merecem respeito, enquanto manifestações culturais que são. E quem me conhece de fato não vai se surpreender com essa afirmação. Sim, eu também sou humano e tenho minhas falhas e preconceitos. Entretanto, nos últimos tempos, talvez um derradeiro sinal de velhice, chegando depois dos cabelos grisalhos e das dores na coluna, andei revendo em parte alguns dos meus conceitos, inclusive sobre música. No que se refere ao rap, meu primeiro contato se deu quando eu ministrava aulas em cursos de comunicação social e design, em Porto Alegre. Foi quase fruto do acaso: usei um clip da música Brasil com “P”, que me fora sugerido quando o tema era manifestações populares. Antes disso nem sabia quem era GOG, o autor que cantava nele uma canção sua, acompanhado de Maria Rita.

Achei impressionante. Um sujeito que consegue escrever letra de música com 221 palavras iniciadas pela letra “P”, com nexo, um relato com história, uma denúncia concreta sobre a vida e os problemas enfrentados por moradores da periferia, tem que ser respeitado. Não é qualquer um que tem esse talento. Descobri então que estava diante de duas siglas, duas palavras compostas por iniciais. RAP vem do inglês Rhythm And Poetry – ritmo e poesia -, determinando um estilo que se sustenta com rimas poéticas em ritmo intenso, integrando um cenário cultural que inclui também o grafite, por exemplo. Seu berço é respeitável: a mesma Jamaica do reggae. E GOG nada mais é do que a simplificação artística do nome Genival Oliveira Gonçalves. Depois dele fui sabendo da existência dos Racionais, do Emicida – que é mais pop e hoje participa do Papo de Segunda, no GNT – e também do Djonga, esse com uma pegada mais agressiva e política. Mas falar sobre eles seria uma outra conversa.

Genival nasceu na cidade-satélite de Sobradinho, no Distrito Federal, em 1965. Passou a vida transitando nesses arredores da Capital, tendo começado a atuar bem jovem, em Guará. Saía com os primos mais velhos, animando nas noites de sábado algumas festas dançantes caseiras, usando velhos discos de vinil e um toca-discos que era do pai. Eram todos amantes da black music. Depois disso integrou o grupo de rap Os Magrello’s e se iniciou no break. Foi amadurecendo, como pessoa e na sua arte, se tornando mesmo um grande letrista. Nessa trajetória, tem dez álbuns gravados em estúdio e um ao vivo, além de quatro coletâneas e um DVD. Em 2017 lançou dois singles, um deles a bem elaborada Escrevo Demais, outro show de letra. Merece destaque e reconhecimento também o que é dito em Mãe África.

O rap jamaicano surgiu em meados dos anos 1960. Se difundiu graças a uma iniciativa muito interessante: a colocação de dispositivos sonoros ao ar livre, nos guetos da sua capital, Kingstone, liberados para dar vida às festas dos populares. Permitia uma sonoridade que traduzia toda uma cultura e o seu cotidiano. Mas foi quando viajou junto com quem fugia da pobreza e buscava sorte melhor nos EUA – sem Trump era mais fácil chegar lá – que ganhou notoriedade maior e se tornou um produto comercializável. Aliás, não há o que o capitalismo não consiga tornar produto. Neste caso, para o imenso público formado por hispânicos e afro-americanos, que se identificaram facilmente com esse então novo ritmo, constituindo enorme mercado. De lá, ganhou o mundo e chegou também ao Brasil. Aqui, segundo GOG, foi essencial a aproximação com a literatura marginal e com movimentos culturais já existentes. Isso assegurou tanto a sobrevivência de um texto original quanto um teor evolutivo. Hoje há alianças estreitas com ativistas e tudo flui com naturalidade em artérias não vistas pela elite nacional, mas que estão vivas e pulsantes.

Um livro que precisa ser lido por quem pretende entender melhor tudo isso é A Rima Denuncia, que foi lançado em 2010 e traz nada menos do que 48 letras selecionadas, de diversas fases da carreira de GOG. Seu disco ISO 9000 do Gueto, de 2015, tem 19 faixas com 13 produtores brasileiros e participação, entre outros, de Zeca Baleiro. Duas de suas faixas, Heroínas e Heróis e África Tática ganharam vídeo clips. E em 2017 o trabalho Mumm – Ra High Tech mescla beats eletrônicos com batidas contemporâneas, trazendo inclusive uma concepção teatral. Por isso tudo, bem que eu queria mesmo ser Genival. Sem esse seu nome, claro. E também não ajudaria muito eu imitar ele usando minhas iniciais para me lançar no mundo musical, se soubesse escrever algo ou tocar algum instrumento. SS não seria de modo algum aconselhável, em especial na atualidade. Poderiam confundir com a tendência ideológica de uma turma perigosa que vive provisoriamente em Brasília, lá bem pertinho do reduto do GOG.

02.05.2020