MINHA PORTELA

Nunca fui um destes fãs incondicionais de carnaval. Ao contrário da minha mãe, por exemplo. Dona Vicentina se permitia ficar acordada todas as noites em que a televisão transmitia os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, ano após ano. Era a única oportunidade em que não cumpria seus rituais rigorosos de sono, com horário mais ou menos certo e um copo com água na cabeceira da cama – mesmo que raramente acordasse para beber. Mas ela não torcia por ninguém, gostando mesmo do espetáculo em si. De quase todas as agremiações que desfilavam ficava embevecida com o desempenho de mestre-sala e porta-bandeira, acompanhava com muita atenção a evolução da bateria, elogiava os carros alegóricos. Eu me prendia apenas em uma parte da transmissão, antes de preferir fazer outra coisa ou simplesmente ir dormir. Só que, ao contrário dela, sempre tive um amor incondicional pela Portela. Vá entender.

No caso dos times de futebol parece existir um processo natural de escolha, que passa pelas predileções de pai, mãe ou outro familiar. Seja para acompanhar, seja para contestar propositalmente a posição do outro, com o mais normal sendo ainda seguir o exemplo. Mas nasci no Sul, onde o entusiasmo pelo evento de Momo está longe de ser como entre os cariocas ou os nordestinos. Aqui samba e frevo são respeitados, mas não têm a mesma repercussão que existe por lá. Mesmo assim, ver a Portela sempre me deu uma satisfação e alegria que as outras escolas jamais conseguiram dar. Aqueles diferentes tons de azul tantas vezes usados, a águia altiva, os sambas contagiantes, a bateria e a dedicação dos seus componentes, aos meus olhos tudo isso sempre pareceu muito superior.

Já que citei o rei da festa, nem todos sabem que ele é inspirado na mitologia grega. Momos, assim como se fosse um plural, era o nome dado a um personagem que, por suas atitudes, personificava a ironia e o sarcasmo, sendo também brincalhão. Em nosso país este bom humor e simpatia são condições essenciais para sua escolha, sendo por tradição também geralmente gordo. Em muitos municípios a figura eleita recebe as chaves da cidade das mãos dos prefeitos, “reinando” do início da festa até a quarta-feira de cinzas.

Voltando à minha predileção, pois não é que agora, com tantos anos de vida de uma paixão que eu julgava solitária ou no mínimo muito rara, descobri que existe em Porto Alegre o Consulado da Portela? Um grupo que promove eventos como rodas de samba, trazendo a alegria e os sucessos da velha guarda da escola, sambas enredo e de raiz. Já aconteceram, por exemplo, na Casa de Cultura Mário Quintana, no Centro Histórico. Também tem a popular feijoada, para angariar recursos, além de venda de camisetas. Vou tentar saber mais sobre eles, não que isso vá me transformar num aficionado ainda mais fanático. Nem tampouco conseguirá a proeza de colocar algum samba nos meus dois pés esquerdos. Mas traz um alento psicológico, o de não sentir-se só. Na próxima vez que nossa Portela vencer um carnaval – em 2021 é provável que nem aconteçam desfiles -, vou saber que existem outras pessoas tão ou mais felizes do que eu, não lá no Rio de Janeiro, 1.570 quilômetros distantes daqui, mas bem pertinho. 

Por tudo o que contei, a música bônus de hoje adquire um significado especial. Ela é um verdadeiro hino, uma declaração de amor que a gente, que adora a Portela, consegue entender muito bem. Foi composta por Paulinho da Viola, em 1969. Ele fez isso como forma de desagravo aos seus companheiros de escola, depois que outra canção sua, feita em parceria com Hermínio Bello de Carvalho, no ano anterior, alcançou grande sucesso. O problema é que “Sei lá, Mangueira” homenageava a escola concorrente. Lançado em 1970, no segundo álbum gravado por ele em estúdio, “Foi um rio que passou em minha vida” é um samba exaltação que veio a se tornar o maior sucesso da carreira desse sambista. Como contado em detalhes no documentário “Meu Tempo é Hoje”, no carnaval seguinte, mesmo não sendo esse o samba enredo da escola, ele foi cantado com entusiasmo pelo público presente, tanto no aquecimento quanto depois do seu desfile. Algo compreensível, pois os corações portelenses têm mesmo “mania de amor”, como consta com muita propriedade na letra.

14.09.2020

Bônus de hoje: samba exaltação Foi um rio que passou em minha vida, de Paulinho da Viola. Gravação de 2016, no Quintal do Zeca, Rio de Janeiro.