A FOME É INCONSTITUCIONAL

Eu estudei geografia na escola, quando cursava aquilo que hoje chamam de Ensino Fundamental e Ensino Médio – eram outros nomes naquela época –, e gostava muito. Quase tanto quanto gostava de história. Em ambas as disciplinas, mas especialmente na primeira, as professoras nos estimulavam a usar mapas. Com eles se entendia melhor, visualizando, questões como topografia, condições climáticas, culturas que podiam ou não ser plantadas em cada região, além das modificações nos territórios dos países, em função de guerras e conquistas. Sempre me dei bem e tirava boas notas. O que nunca vi, naquela época, foi o agora chamado de “Mapa da Fome”.

Esse termo é bem mais recente, sendo uma ferramenta que foi criada para referenciar países que precisavam e precisam de uma atenção especial da ONU – Organização das Nações Unidas, em função de não terem um acesso adequado a alimentos suficientes para sua população. Ela foi adotada dentro do documento que chamaram de Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, sendo essa aferição feita pela FAO, organismo da própria ONU voltado exclusivamente para alimentação e agricultura.

O Brasil durante muitos anos frequentou essa lista indesejada. No ano de 2015 conseguiu sair dela, depois da adoção de uma série de políticas públicas por parte do governo federal, nas épocas em que Lula e Dilma ocuparam a presidência da República. Tudo começou com o Fome Zero, ainda em 2003, quando se estimava que 44 milhões de pessoas não tinham o que comer diariamente no nosso país. Naquele mesmo ano teve início o Bolsa Família, uma política de assistência social voltada à transferência de renda, com a qual o governo passou a oferecer um subsídio para famílias em condições de pobreza ou miséria. O aumento real do poder aquisitivo do salário mínimo, ao longo de alguns anos, bem como ações pontuais como o incentivo à agricultura familiar e uma maior atenção à merenda escolar, também contribuíram de forma decisiva. A manutenção de estoques reguladores, permitindo que se pudesse ter um controle melhor dos preços foi outra decisão acertada, entre tantas.

De 2016 para cá todas essas iniciativas foram desidratadas. O Fome Zero não existe mais. O Bolsa Família foi sendo encolhido, até que agora, próximo das eleições deste ano, foi artificialmente inflado com garantia disso apenas até dezembro. O salário mínimo deixou de ter ganhos reais. A agricultura familiar sofreu com falta de financiamento e estímulo para colocação dos seus produtos no mercado. A merenda escolar teve recursos reduzidos de forma significativa. E os estoques reguladores terminaram. Além disso, em função do preço no mercado internacional estar mais atraente, o agronegócio passou a priorizar ainda mais a exportação, desabastecendo o mercado interno de alguns itens que seriam importantes – a carne, por exemplo, atingiu preços absurdos. Tudo isso junto, somado ao crescimento do desemprego e aos cortes em serviços de assistência social, tiveram a consequência exatamente esperada: o Brasil voltou ao passado também nisso, conseguindo outra vez lugar no famigerado mapa.

É importante salientar que o Mapa da Fome não aponta a inexistência total de alimentos, mas sim conclui que o problema se encontra na sua disponibilidade. Ou seja, no fato de existir um desencontro geográfico entre a existência desses produtos e a sua disponibilidade para as famílias mais necessitadas. Há aquelas com despensas cheias, com a maioria estando com o refrigerador vazio. Isso quando possui um. Outro equipamento doméstico que perdeu significado foi o fogão a gás, devido ao preço do produto.

Outra expressão hoje corrente é “insegurança alimentar”. Isso pode ser considerado apenas como uma expressão retórica. Mas, na realidade, não é assim: a insegurança aponta para a instabilidade. São pessoas que passam fome com relativa frequência e que, quando se alimentam, não têm certeza de quando será a sua próxima refeição. Ou seja, a insegurança está ligada à falta de uma regularidade, podendo ela ser classificada como leve, moderada e grave. De 2002 a 2013, caiu em 82% a população de brasileiros considerados em situação de subalimentação, segundo atestou a ONU. O que terminou nos tirando do tal mapa, de um modo que se sonhava ser permanente.

Agora os números são outra vez assustadores. Hoje cerca de 152 milhões de pessoas convivem por aqui com algum grau de insegurança alimentar. Isso corresponde a 58,7% da população. De 2018 para cá houve incremento de 60% nesse contingente populacional. Gira em torno de 33 milhões o número de pessoas que passam fome constante. Um problema grave que foi retomado no período de Temer e acelerado substancialmente por Bolsonaro. Impressionante é que tal situação, decorrente ainda de uma enorme desigualdade na renda, não condiz com um Estado que possa ser chamado de democrático. A própria Constituição de 1988, quando estabelece o sistema tributário que deve ser vigente, aponta que a função de tal arrecadação é assegurar as demandas sociais e cumprir com o objetivo de alcançar justiça social. Se trata de uma obrigação do Estado garantir qualidade de vida para todos e, se tal não está sendo alcançado, ele não está obedecendo o texto constitucional.

Portanto, a fome é inconstitucional. Ela é inaceitável além das razões morais, que já seriam suficientes. Ela é ilegal, depois de desumana. Quando se permite que alguém passe fome, num país que produz tanto alimento, estamos pondo no lixo nossa dignidade. Isso, pelo menos isso, se outras razões não existissem, deveria vir à mente no momento em que se precisa decidir o futuro da nossa nação, do nosso povo.

11.10.2022

O bônus de hoje é o áudio da música Tem Gente Com Fome, letra do poeta pernambucano Solano Trindade, com música de João Ricardo.

Tem Gente Com Fome – Solano Trindade e João Ricardo

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