EU NÃO TENHO MAIS BUTIÁS NOS BOLSOS
Para quem não mora no Rio Grande do Sul ou não tem conhecimento da nossa mania muito peculiar, de criar expressões para quase tudo, tenho que começar explicando o que significa “me caíram os butiá do bolso”. Primeiro, ela é usada assim mesmo, com erro proposital de concordância (os butiá), ou não seria tipicamente gaúcha. Segundo, butiá é o nome de uma frutinha típica da região, pequena e quase esférica, de cor amarela. O pessoal a colhe e não raras vezes leva nos bolsos, para comer mais tarde. Pois bem, parar de sopetão, realizar algum movimento brusco, são situações que podem fazer com que caiam as frutas dos bolsos. Assim, por analogia, diante de uma surpresa, de algo inesperado, podemos perder algo, nem que seja apenas o controle, a compostura ou a calma. Ocorre o uso diante se um susto, estupefação, de algo de fato muito inesperado estar acontecendo.
A árvore existe não apenas nas zonas rurais, mas também em áreas públicas de algumas cidades, o que facilita “colheita e consumo”. Por aqui também se costuma usar butiás nas garrafas de cachaça, fazendo com que o precioso líquido ganhe perfume e sabor característico. Em muitos locais são feitas também geleias e licores. Até mesmo um tipo de vinagre pode ser produzido e das sementes é possível inclusive extrair óleo. Para acrescentar mais uma nas suas múltiplas utilidades, do estipe – nome dado ao caule de palmeiras – se obtém matéria prima para a fabricação de papel. Mas não existe apenas no Sul, para sermos exatos. São encontrados pés até a altura das Minas Gerais, mas ainda no Uruguai, Argentina e Paraguai. Segundo a crença de algumas tribos indígenas, o butiazeiro seria uma árvore sagrada.
Os butiás verdadeiros aqui de casa estão em uma garrafinha de cachaça. No momento, não são muitos. Quanto aos imaginários, até poderiam ocupar meus bolsos, se não estivessem todo o dia sendo simbolicamente derrubados de dentro deles. Isso porque não faltam mais surpresas. Aliás, de tão usuais e cotidianas elas nem mais merecem ser chamadas assim. Ninguém mais fica espantado com as notícias estapafúrdias que a cobertura jornalística nos fornece a cada dia. Por exemplo, em que outro lugar do mundo um homem que tenha contra si um mandado de prisão e receba os policiais resistindo à bala, ferindo pelo menos dois deles, ao ser detido depois recebe quase que um pedido de desculpas? Depois de uma rendição que foi negociada, o policial federal que o deteve não escondia o constrangimento, mesmo estando cumprindo com o seu dever. Um pouco diferente do que fizeram três colegas seus, da PRF, que detiveram um homem simples, desarmado, o colocaram dentro do porta-malas da viatura e o mataram com o uso de gás. Mesmo estando toda a sua ação sendo filmada. Claro que no primeiro caso era uma “otoridade” branca e no segundo um popular anônimo e negro.
Como pode um butiá sequer continuar no meu bolso, quando eu ouço o presidente de um clube social de Porto Alegre, onde um cantor negro foi vítima de racismo, fato comprovado em vídeos e depoimentos, dizer que estava pensando na possibilidade de processar a vítima, em função desta não ter usado um terno no show e não ter voltado para o usual bis, diante do público que a vaiava? Ou ainda, que butiá resiste sem se jogar sozinho ao chão, quando se ouve uma dessas celebridades sertanejas, que tem seis filhos com seis mulheres diferentes, declarar o seu apoio a um candidato a presidente, porque assim como ele também é um defensor da “família tradicional”?
Vamos radicalizar no exemplo: deveria ser uma enorme jaca e não os pequenos butiás, diante do que disse um deputado do PL gaúcho, que sugeriu sem nenhum constrangimento que jovens estudantes de Santa Maria e Pelotas deveriam ser queimados vivos, por terem participado de manifestação contra cortes na educação e favorável ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva, da Coligação Brasil da Esperança. Bibo Nunes, que está prestes a perder a imunidade parlamentar que agora o protege, por não ter sido reeleito, desconheceu o trauma da primeira das duas cidades, onde nada menos do que 242 universitários perderam suas vidas com o incêndio da boate Kiss. Mesmo que tal tragédia não tivesse acontecido – o que seria o desejo de todas as pessoas normais – já seria absurda e criminosa a sua fala.
Muitos anos depois de ter feito minha graduação como jornalista, voltei a estudar. Fiz estudos complementares em Escrita Criativa, antes de ter concluído um mestrado em Letras. Acho que inconscientemente estava me preparando para os tempos atuais. Escrever sobre o cotidiano, hoje em dia, requer um enorme conhecimento em ficção. O texto jornalístico não basta: se faz necessário que se esteja preparado para a literatura fantástica. E vejam que os exemplos que dei acima foram coisa de uma semana apenas – exceto o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, aquele que estava pilotando sem capacete, como Bolsonaro sempre faz, sendo por isso assassinado pelos policiais rodoviários. Que cada um ou uma que está lendo agora pense um pouco, para se dar conta de que também deve saber de vários fatos assim. Haja butiá!
25.10.2022

O bônus de hoje é o áudio da música “Pare o Mundo Que Eu Quero Descer”, de Silvio Brito, composta no início dos anos 1980, mas com uma letra ainda muito atual.
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