Muito tempo atrás, quando surgia uma necessidade qualquer, o ser humano colocava sua engenhosidade na busca de uma solução e criava algo que resolvesse o problema. Foi desse modo que a humanidade evoluiu e melhorou suas condições de vida e sobrevivência. Criamos utensílios, ferramentas, desenvolvemos processos, acumulamos conhecimento. Tudo funcionava exatamente assim, nessa linha lógica: percepção da dificuldade, busca de uma solução pela inventividade, fabricação do produto, satisfação da necessidade inicial. E tudo ia bem, até que começou a ocorrer um desequilíbrio, quando a produção passou a ser feita em série.

Não haviam mais mestres e aprendizes, surgindo uma figura que não atuava diretamente na feitura de nada: essa pessoa tratava de alugar grandes galpões, intermediava a aquisição de maquinário e de matéria prima e colocava terceiros a produzir em seu lugar. As fábricas substituíam as oficinas e a produção alcançava escala maior. Isso forçava a existência de demanda, pois não poderia haver excedente ou essa “ideia brilhante” não daria certo. Então tudo foi sendo cada vez mais acelerado. Aquilo que era feito tinha necessariamente que ser vendido, para os valores retornarem multiplicados. Mesmo uma fatia generosa desse retorno sendo apropriada pelo “dono”, outro tanto era investido em mais e mais produção, porque se a roda parasse de girar ele não lucraria mais. Se todo mundo que comprasse seu produto nunca mais precisasse comprar outro, ele atingiria um ápice e iria regredir até a falência.

Só que há um limite no volume que pode ser absorvido, havendo então que se criar novos mercados. Uma das alternativas seria simplesmente pagar melhor os empregados, que passariam eles mesmos a absorver parte maior daquilo que fabricavam. Mas essa tinha que ser uma decisão tomada com muita parcimônia, por duas razões: uma delas é que isso poderia colocar em risco uma parcela do lucro que esses geravam constantemente, em geral sem perceber a sua dimensão. A outra é que se aqueles que detêm o conhecimento de como fazer também acumulassem capital, poderiam eles mesmos assumir uma posição de comando, abrindo concorrência. Então, o ideal é que os novos mercados consumidores surgissem mais distantes. Ou que a produção fosse toda ela disseminada lenta e gradualmente pela sociedade. Na verdade, uma terceira alternativa foi depois “descoberta” e posta em prática, que é a obsolescência programada – você compra, a coisa adquirida perde propositalmente qualidade com o tempo e você precisa comprar outra vez. Mas, sobre isso, vou escrever em outra oportunidade.

Então, voltemos ao rumo anterior: foi nesse momento que ocorreu um grande avanço na publicidade. Os “reclames” não valiam mais grande coisa. E os anúncios, que antes eram feitos calcados na funcionalidade daquilo que anunciavam, foram sendo transformados. Nos anos 1950 para que fossem vendidos os liquidificadores, as enceradeiras e outros eletrodomésticos que invadiam as casas no pós-guerra, mostravam o modo como eles funcionavam e o quanto simplificariam a vida de quem os utilizasse. Mas esse método se tornou obsoleto e se passou a vender não o produto, mas ideias que eram associadas a ele. Era preciso investir no surgimento de mais e mais desejos. Não bastava apenas dar brilho ao piso sem estar a pessoa curvada e fazendo esforço físico: as esposas perfeitas faziam isso usando a nova ferramenta. A casa e sua dona ficavam “melhores” do que as vizinhas. Então, faça logo um sacrifício financeiro e compre logo a sua.

O Marlboro não vendia tabaco, mas a masculinidade e a liberdade do cowboy fumante. E pouco importa se o ator morreu de câncer no pulmão, alguns anos depois. Os anúncios de margarina vendem a felicidade familiar, estampada em rostos sorridentes. Os automóveis não mostram prioritariamente economia, conforto e segurança, mas registram o quanto de status tem quem adquire o modelo do ano. O produto, seja ele qual for, ganha um valor em si. O caderno escolar não é mais onde o aluno escreve, anota, registra o conteúdo das aulas: ele é a figura da moda que vem estampada na capa, elevando seu preço em dez vezes. Se cria o tempo todo necessidades que são artificiais e depois elas são satisfeitas. Ou seja, uma inversão absoluta no princípio de tudo.

O pior é que essa lógica consumista, que na verdade é ilógica, está destruindo nossas vidas e a vida do planeta. Hoje tudo é produto, tudo é fonte de lucro, até nosso tempo de lazer, nosso ócio. Até mesmo o que é essencial para a vida. A água está sendo privatizada, as praias estão sendo privatizadas, nossas opiniões estão sendo forjadas. Assim, algoritmos acompanham tendências, com o objetivo de determinar novos rumos que não seriam necessariamente aqueles pelos quais optaríamos sem estímulos externos. Ou seja, no fundo ninguém mais é livre como pensa. Foi assim com as últimas eleições presidenciais no Brasil, por exemplo. Se criou um mal, plantando informações falsas, que foram sendo repetidas até assumirem a aparência de verdadeiras; então foi imposta a necessidade deste “mal” ser extirpado; e por último veio um produto mal feito, pior acabado, que foi posto como solução de todos os nossos problemas. Mas esse é também um outro assunto. E, felizmente, nesse caso sim existe a obsolescência prevista com antecedência para o final deste ano.

13.04.2022

O bônus de hoje é Poema da Necessidade, de Carlos Drummond de Andrade, recitado pelo também mineiro Sílvio Matos, ator e ex dublador.

DICA DE LEITURA

A ERA DO CAPITAL IMPRODUTIVO: a Nova Arquitetura do Poder, sob Dominação Financeira, Sequestro da Democracia e Destruição do Planeta (Ladislau Dowbor – 315 páginas)

Neste livro, Ladislau Dowbor investiga como a riqueza do mundo – minérios, petróleo, trabalho, alimentos –, produzida pelo trabalho, é capturada pelos bancos e seus intermediários financeiros. Com uma vasta pesquisa, Ladislau revela os mecanismos usados pelas corporações financeiras, com estruturas que muito se assemelham a governos, para exercer o poder político diretamente e influenciar as principais decisões dos poderes públicos. O resultado não poderia ser diferente: esterilizam a riqueza produzida pela sociedade para multiplicá-la somente em seu próprio benefício, por meio de investimentos financeiros que não criam novas tecnologias nem geram novos empregos. Ladislau demonstra por que o mercado considera positiva qualquer atividade que gere lucro – ainda que trave a economia e produza prejuízos sociais e ambientais – para enviar seus recursos, a salvo de impostos, a paraísos fiscais. O livro destrincha como a financeirização dilacera as economias no Brasil e mundo afora ao forçar os governos eleitos a cumprir agendas refutadas pelas urnas. Sobretudo quando desviam grande parte do orçamento público para o pagamento de juros da dívida, engordando ainda mais as forças do capital financeiro em detrimento de políticas públicas de saúde, educação, previdência.

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