A VELHA JOVEM GUARDA

Numa época na qual a TV Record tinha uma programação que não era contaminada pelo atual evangelismo pentecostal, quando buscava oferecer ao seu público entretenimento real e alguma dose de jornalismo, ela foi o canal que propiciou a criação de um movimento autêntico na música brasileira. O ano era 1965, mês de agosto. No dia 22 entrava no ar o programa Jovem Guarda, apresentado por um trio de cantores em início de carreira: Wanderléa, Erasmo e Roberto Carlos. O último já havia gravado a música Splish Splash, uma versão de Erasmo para a canção original de B. Darin e J. Murray, dois norte-americanos, feita em 1958 – ela chegou a ocupar a terceira colocação na cobiçada lista da Billboard Hot 100, o que não era mesmo pouca coisa.

Por aqui, com o sucesso repentino e explosivo do programa, Erasmo e Roberto emplacaram também sucessos como Vem Quente Que Eu Estou Fervendo e ainda Quero Que Tudo Vá Para o Inferno. Apesar dos títulos, eram letras quase ingênuas, que embalavam uma parcela mais alienada da juventude brasileira, enquanto outra preferia as letras de protesto que começavam a brotar, nos tempos nebulosos da ditadura militar que tinha apenas pouco mais de um ano. Ficaram no ar, com enorme audiência e ditando moda, até 1968. As gravações eram todas feitas no Teatro Record, em São Paulo, mas a atração era levada para várias outras capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, essas em videoteipe.

As apresentações eram mais ou menos padronizadas, com os três que comandavam o espetáculo intercalando canções próprias com outras, de convidados especiais. Em função disso, terminaram lançando muito gente que também conseguiu ganhar notoriedade nos anos seguintes. Como Wanderley Cardoso, Rosemary, Jerry Adriani, Martinha, Antônio Marcos, Evinha, Waldirene, a dupla Leno e Lílian, e os grupos Renato e seus Blue Caps, Os Incríveis e os Golden Boys, entre outros. Diante de todos, a plateia se descabelava e dava gritos histéricos, exaltando os “reis do iê-iê-iê”, como o pessoal passou a ser identificado. Esse nome era uma alusão a um filme dos Beatles, A Hard Day’s Night, que no Brasil foi rebatizado com essa expressão. Aliás, parênteses: eu sempre fico intrigado, tentando saber em que as pessoas encarregadas de darem títulos locais aos filmes estrangeiros se baseiam, porque existem verdadeiros absurdos.

Interessante citar que esse movimento “espontâneo” na verdade surgiu dentro de uma agência de publicidade, a Magaldi, Maia e Prosperi, que foi contratada para resolver um problema na grade de programação. Foram seus profissionais que propuseram preencher o horário das tardes de domingo com música, quando o governo decidiu proibir a transmissão de partidas de futebol ao vivo, evitando que manifestações populares contra o governo vazassem, sem o controle dos censores. Os militares jamais souberam, mas o título do programa foi inspirado na frase do revolucionário russo Vladimir Lenin. Ele dissera que “o futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está ultrapassada”.

O apoio interessado das gravadoras e o aporte de várias campanhas publicitárias mantiveram a audiência crescente. Apenas na capital paulista a estimativa era de três milhões de jovens ligados, quando ele atingiu seu ápice. Números expressivos para aquela época. Assim, mesmo depois de tirado do ar, o programa rendeu notoriedade residual para muita gente. Wanderléa se manteve ao nível dos convidados que foram catapultados. Com o passar dos anos Roberto, acreditando piamente que de fato era um rei, passou a viver recluso em seu castelo. E sua aparição clássica se tornou o especial de final de ano, da Rede Globo, onde desfila as mesmas canções, roupas brancas e o repetido arremesso de rosas vermelhas que são antes beijadas – fora alguns poucos shows, para público seleto. Erasmo seguiu mais fiel ao seu histórico de roqueiro, envelhecendo com uma enorme dignidade e sendo ainda hoje referência para muita gente jovem. Mesmo com seus cabelos raros e ralos estando completamente brancos.

05.04.2022

Erasmo Carlos, Wanderléa e Roberto Carlos, os apresentadores da Jovem Guarda

O bônus de hoje é Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, de Roberto e Erasmo Carlos. Essa é sem dúvida uma das músicas mais lindas da dupla e foi composta em homenagem a Caetano Veloso, quando esse foi exilado em Londres, pela ditadura militar.

DICA DE LEITURA

JOVEM GUARDA: moda, música e juventude

O livro de Maíra Zimmermann aborda a emergência de um estilo de vida jovem nos anos 1960. Ele foi resultado de um grande esforço da indústria cultural, que buscava criar ídolos pop, com inspiração no modelo britânico. As transformações comportamentais do período são analisadas dentro do contexto da formação do mercado consumidor adolescente, associado ao início do prêt-à-porter no Brasil.

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