DIVALDO NÃO REPRESENTA A MAIORIA

Apenas as pessoas que não conheciam bem Divaldo Pereira Franco é que foram surpreendidas pelas suas declarações, proferidas no último dia 9 de fevereiro. Integravam palestra que ele ministrou na Mansão do Caminho, em Salvador, tendo se tornado públicas a partir de vídeo que circula nas redes sociais desde a quinta-feira passada, dia 16. O médium diz literalmente que “estamos vendo leis absurdas, prisões estúpidas, sem julgamento. Como é que pegam pessoas na rua, colocam num ônibus e levam para a cadeia?”. Fazia naquele momento referência aos que foram detidos em flagrante, por uma série de crimes cometidos em Brasília, no dia 8 de janeiro. Ainda segundo ele, não se pode acusar essas pessoas de serem terroristas, pois “ninguém estava com revólver, nem faca, nem canivete, nem gilete, nem cortador de unhas”. E não ficou nisso, com ele se superando nas observações que continuou fazendo: “mil e tantas pessoas, crianças de colo, idosos de 80 anos e ninguém se sensibilizou”. Para concluir, disse que “a imprensa nem toca no assunto, porque desagrada patrocinadores”.

Foi um verdadeiro show de desinformação e um desserviço à verdade. Não há absurdo nas leis, com elas apenas sendo agora cumpridas. Não são estúpidas as prisões, que se fizeram mais do que necessárias. O julgamento – e ele faz que não sabe disso – virá apenas depois de todo o rito, que passa pela investigação policial com indiciamento ou não, pela aceitação ou não da denúncia por parte do Ministério Público, para então ser instaurado o processo judicial, no qual será garantida a ampla defesa. Estão presos preventivamente os que representavam maior risco para a ordem pública, muitos dos quais inclusive com antecedentes criminais, enquanto centenas de pessoas terminaram liberadas já nos primeiros dias, com ou sem o uso de tornozeleiras eletrônicas.

Será que devido à idade avançada Divaldo não vê mais televisão, nem acompanha notícias por qualquer outro meio confiável? A violência do grupo golpista foi extrema e o dano aos bens públicos de elevada monta. Não teve esse senhor, lá na Bahia, acesso a quaisquer um entre centenas de vídeos com as cenas, muitos dos quais feitos pelos próprios envolvidos? Onde estão nessas imagens as crianças de colo que ele cita? Idosos que participaram pareciam estar em boas condições tanto físicas quanto de discernimento, não sendo inclusive o grupo mais numeroso apesar de também atuante. Entre esses os octogenários, se existiam, com certeza não somavam o número de dedos de uma mão. Quanto à imprensa, essa foi incansável na cobertura, que se mostrou mais do que adequada e necessária. Mais ainda: para fazer terrorismo ninguém precisa se transformar em um homem-bomba.

O auge da obra de Divaldo junto ao Movimento Espírita foi aquela estrutura que ajudou a construir a partir de 1952, no bairro de Pau da Lima, na capital baiana – eu estive lá uma ocasião, conhecendo tudo de perto. E não fez isso sozinho, tendo sido de fundamental importância a participação de Nilson de Souza Pereira. Mas, o que o notabilizou foram as palestras que passou a fazer em todo o país. Entretanto, quem teve a oportunidade de ver mais de uma – eu vi pessoalmente cinco delas –, e não tinha a sua percepção afetada pela idolatria, já notava duas coisas. Uma, que ele seguia um roteiro cuidadoso, repetindo sempre citações e passagens postas de modo criterioso em momentos pensados, numa retórica calculada e bastante aprimorada, com o passar do tempo. O segundo detalhe é que ele não fazia esforço algum para se expressar em uma linguagem mais popular. Adorava, por exemplo, usar o arcaico pronome pessoal “vós”. Sendo mais direto, ele sempre foi pernóstico. Divaldo jamais teve e jamais conseguiria ter a humildade e a simplicidade de um Chico Xavier, por exemplo.

O que não se pode negar é a sua importância na difusão da doutrina. A notoriedade que ele adquiriu – e da qual sempre gostou bastante – deu uma contribuição importante nesse sentido. Ele arregimentava grande número de pessoas, por onde passava. E isso popularizava ao menos as noções básicas do espiritismo. Nos últimos tempos, entretanto, falava muito mais para os já “iniciados”, não tendo mais aquele poder de trazer público externo. Hoje se mostra um homem que está tendo dificuldades no envelhecimento. Ele não arreda um centímetro das suas posições, que sempre foram conservadoras e que agora parecem estar se aprofundando. Sob o cabelo cuidadosamente pintado, pensamentos que não seriam de modo algum corroborados por Kardec ganham cada vez mais espaço.

O ápice deste modo de pensar, que se revela há tempos como atrasado, talvez tenha sido atingido quando ele recebeu das mãos de Bolsonaro, antes das eleições do ano passado, a Insígnia da Ordem do Rio Branco. Com ela veio o encantamento e ele não se acanhou mais em momento algum no sentido de confirmar seu apoio a um homem que é verdadeira antítese de tudo o que prega a Doutrina Espírita. Kardec, o codificador, sempre defendeu a ciência e repetia que, no dia que essa desmentisse algo defendido nos ensinamentos, eles deveriam ser revistos. O nosso felizmente agora ex-presidente fez de tudo para destruir a educação e a pesquisa em nosso país, sucateando ambas em todos os níveis. Passou todo o período da pandemia incentivando os brasileiros para que não se vacinassem, apesar de agora saber-se que ele se vacinou. E foi o maior responsável pelo absurdo de termos perto de 700 mil desencarnes, com mais da metade desse número sendo evitável. Não pode se declarar cristão quem tenha um torturador como ídolo. Não é cristão quem admite ser racista, homofóbico, misógino, quem manifesta desrespeito com as mulheres, os índios e deficientes, quem imita uma pessoa que está morrendo asfixiada e acha graça disso.

Alan Kardec era um educador amoroso e racional. Ao receber os dados que vinham de médiuns de todo o mundo, com os quais sistematizou a doutrina em seus livros basilares, ele preferia refutar mil verdades do que aceitar o risco de introduzir nos textos uma única mentira. Divaldo virou um disseminador de fake news, como essas que citei na abertura desta crônica, esteja fazendo isso de modo involuntário ou consciente. Parece ter esquecido que um verdadeiro espírita defende o amor e a caridade, não o ódio e o apego ao poder. Defende a paz, não que a população se arme. Jesus Cristo foi o maior exemplo de acolhimento, Bolsonaro causou desagregação. Como agora se vê também dentro do Movimento Espírita, que teve parte dos seus membros cooptados para apoiar algumas práticas diametralmente opostas aos princípios doutrinários.

Sobre as manifestações de Divaldo, ele não fala em nome do Movimento Espírita como um todo. Não recebeu procuração para tanto. Hoje em dia, nem mesmo a Federação Espírita Brasileira consegue fazer isso. Porque o espiritismo no fundo é uma filosofia que defende o livre pensar, que respeita singularidades, que entende a complexidade da existência. Sua organização institucional, para ser integrante do tecido social, se faz necessária. Mas em alguns momentos tem se revelado asfixiante, uma forma de conservar tanto o passado que chega a negar os aspectos da doutrina enquanto proposta progressista, de vanguarda, de responsabilidade com o presente e de visão e compromisso com o futuro. O Movimento Espírita não está num mundo separado, vivendo uma realidade paralela. Ele está inserido no espaço e no tempo presentes, precisando entender e fazer de fato parte disso.

Felizmente nós temos grupos como o EàE (Espíritas à Esquerda), já organizado em 17 estados brasileiros e com encontros promovidos em âmbito nacional. E ainda, entre outros, existem a Associação Brasileira Espírita de Direitos Humanos e Cultura de Paz, o Coletivo de Estudos Espiritismo e Justiça Social, o Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, o Espíritas Progressistas, o Coletivo Girassóis – Espíritas pelo Bem Comum, além da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita. Essa última mantém a Universidade Livre Pampédia, que oferece o curso de Pós-Graduação em Pedagogia Espírita. Ou seja, o movimento já possui estrutura sólida e legítima, reunindo quem não abre mão de ser mantido o braço da preocupação e das atribuições sociais, como algo além da também necessária caridade material. Vários desses grupos divulgaram manifestos contra o voto em Bolsonaro, no ano passado. Pesquisas feitas por institutos sérios demonstraram que no último pleito, ao contrário do anterior, a votação dos espíritas majoritariamente (67%) não foi dada para ele. Ou seja, na pior das hipóteses se pode afirmar que Divaldo não representa a maioria. E, depois desse último fato, mais contestações surgiram, também fora do âmbito religioso e na imprensa em geral.

Não se pode mais permitir a manipulação da realidade. Nem a proposital confusão do que sejam a Doutrina Espírita e o Movimento Espírita, que são coisas totalmente diferentes. A primeira segue irretocável; o segundo merece passar por uma revisão e uma depuração urgentes. Para concluir e voltando a falar de Divaldo, todo o nosso agradecimento a ele pelo seu passado. Mas é triste vermos a senilidade de um homem que tinha tudo para ser um líder respeitado, mas que agora se acomodou em postura muito menor, de um simples pastor. No mau sentido desta palavra.

24.02.2023

O Movimento Espírita sempre foi conservador, ao contrário da Doutrina Espírita. Essa é progressista por excelência (Importante: a ilustração acima nos mostra Alan Kardec e não Divaldo Pereira Franco)

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LIDERANÇA LÍQUIDA E LIDERANÇA SÓLIDA

O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que faleceu em Leeds, Reino Unido, no ano de 2017, continua surpreendendo por escritos que deixou. Basta que a gente se debruce sobre alguns deles e se nota o quanto suas observações são e seguem pertinentes. Foi criação sua o uso da expressão que associava relações e situações de uma suposta pós-modernidade com algo líquido. Fez isso para melhor explicar que elas se moldam e escorregam, escapam entre nossos dedos, não têm a permanência que seria seu oposto, não têm mais solidez.

Isso veio acontecendo com incrível rapidez em todo o mundo, num passado recente, quando se verifica quem ocupou ou ocupa liderança política, por exemplo. Caíram do céu nomes nunca antes sequer considerados, que terminaram por ocupar espaços inimagináveis, sendo um total paradoxo ao defender como novo ideias que pareciam arquivadas para sempre, apodrecidas depois do fracasso passado. Mas como teriam conseguido isso? A resposta simples está no fato de terem tido a visão oportunista de se tornarem produtos, de adotarem embalagens que grotescamente escondiam conteúdos diferentes do que prometiam por fora. Disse ele que a cultura moderna tem é clientes para seduzir. E a sedução atinge seus propósitos porque cega.

O discurso real foi substituído por intenções meramente publicitárias. E isso deu certo, para quem sempre teve propósitos não democráticos. Haja vista que mesmo a mídia dificilmente fala em cidadãos, abordando as pessoas como eleitores. Seja em períodos de campanha, onde isso se acentua, mas até mesmo fora deles, reforçando com pesquisas de aferição de popularidade e aceitação das ações e dos governantes. A racionalidade foi tornada obsoleta, do mesmo modo que a verdade. Não é por nada que disparates proferidos ganham força e espaço. Que as chamadas “fake news” se propagam com velocidade tão absurda quanto o seu conteúdo.

Deste modo, não é mais um ser humano que ocupa o posto, mas uma marca. Bolsonaro, por exemplo, nunca passou de uma figura obscura, habitante do submundo da política brasileira. Mas impulsionou algo que se tornou maior e mais perigoso do que ele próprio, que é o agora chamado “bolsonarismo”. Ele já pode ser trocado, pois fora do poder tende a se tornar obsoleto. Cumpriu seu papel e isso foi mais do que suficiente. A imensa maioria de quem votou nele, especialmente no pleito de 2018, fez isso ao depositar fé e confiança em algo irreal, criado. Deste modo, em algo certamente provisório, descartável. Foram clientes de um poder persuasivo e emocional, que se repetiu em 2022 sem alcançar o sucesso desta feita. Isso porque, ao contrário da vez anterior, desta o enfrentamento se deu contra uma marca ainda mais poderosa. E muito menos líquida, mais real, baseada em outros níveis de confiança e fé.

Um dos recursos vitoriosos de Lula foi a memória. Tanto do que ele representou no passado quanto de tudo o que o produto mais recente prometera e não cumpriu, quando a embalagem foi aberta. O discurso de Bolsonaro não foi para o público, mas para o eleitorado. Lula falou para ambos. Para Bolsonaro o eleitorado era um meio; para Lula o cidadão era um fim. Por isso o resultado das eleições presidenciais brasileiras teve tanta repercussão mundial. Porque não apenas serviram como um exemplo para o combate da mentira que se alastrou por tantos lugares, mas também mostrando que valores mais sólidos ainda podem e devem ser perseguidos.

O ex-presidente fujão estabeleceu conexões provisórias, muitos contatos descartáveis. Usava camisetas de todos os clubes. Era um evangélico tão convicto quanto os votos que deles poderia angariar. Neste campo, o religioso, também trocaria de camisa se outra passasse a ser bem mais conveniente. Lia pouco ou quase nada, mas apenas o que pudesse ser reescrito, se necessário fosse. Entretanto, os verdadeiros líderes – e basta que se debruce na história para comprovar – sempre se caracterizaram por discursos constantes. Falavam para comunidades, não para fã-clubes. Não faziam uso de cercadinhos. Não se escondiam atrás do poder armado. Ao contrário, não raras vezes se insurgiram contra ele.

O dia de hoje marca o quinto ano da morte de Bauman. Seu modo tão inteligente e peculiar de ver e entender o mundo e as relações sociais segue tendo grande importância. No caso que citei, nem que seja para comparar e estabelecer as diferenças entre uma liderança líquida, que acaba de se esvair, com outra sólida, que acaba de retornar ao poder. Então, se torna oportuno também concluir com uma citação de um outro grande e incontestável líder e exemplo, que foi Gandhi: A minha vida é a minha mensagem. A frase serve perfeitamente para explicar ambos os políticos brasileiros.

15.01.2023

Há lideranças que se dissolvem, por absoluta falta de consistência

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