Uma professora universitária e escritora estadunidense de nome Saidiya Hartman deu um enfoque diferente à história que se conta sobre a escravidão. Autora de vários ensaios amplamente reconhecidos, seus campos de interesse são a literatura e a história cultural afro-americana. Ela já produziu trabalhos focando não apenas esse tema, mas também direito, estudos de gênero e produção literária. Entretanto, resultado de uma viagem que fez a Gana, na busca de suas próprias origens, o livro Perder a Mãe consegue oferecer uma abordagem cativante, que prende o interesse do leitor e analisa a questão de um ângulo novo.

A obra acabou se tornando um misto entre um texto acadêmico e um relato pessoal. Está escrita em primeira pessoa e oferece vários relatos íntimos de sua história familiar. Deste modo, ficou muito próxima do que em geral são os romances, mesmo não sendo. A autora, em que pese se tornar uma espécie de personagem, está apontando para cicatrizes que vão muito além. Em nenhum momento deixa de ser um ensaio, apesar de ter aberto mão da objetividade de se deveria esperar de um. Mas o que acontece é que a linguagem distinta do habitual termina apenas por oxigenar a narrativa. Importante ressaltar que não se trata de um lançamento, com o livro já tendo trajetória no exterior. A tradução para o português é que foi feita agora, recentemente.

Inicialmente o que ela buscava em Gana era material para realizar um detalhado mapeamento das rotas escravistas. Mas encontrou coisas que já sabia e outras que nem imaginava. E com isso, usando então as suas raízes como linha condutora, passou a levar em conta aspectos afetivos da produção de conhecimento. A história acompanha as trilhas do interior do país até a costa, além da travessia do Atlântico, caminhos pelos quais milhares de pessoas foram conduzidas contra sua vontade. Todas elas levadas a um trágico recomeço longe de suas raízes, sem sua casa, sem seus familiares, sem sua identidade. O perder a mãe é esse arrancar do colo, esse esquecimento imposto das origens e do passado. O que era essencial para os escravagistas, sendo marca extrema da submissão.

Para seu absoluto espanto, a escritora encontrou uma indústria turística preparada para receber afro-americanos que voltam à África em busca de suas raízes. Foi levada por um guia para um tour em pontos ligados ao escravismo, mas a estrada no seu percurso final estava ornamentada por bandeirinhas dos EUA. Soube então que aqueles percursos haviam sido moldados usando a linguagem proposta pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Os nativos foram ensinados a reproduzir a história oficial externa. Washington, não conseguindo lidar com esse legado vergonhoso dentro do seu próprio território, estava fazendo isso no local de onde “importara” mão de obra barata e descartável. A rede de lanchonetes McDonald’s chegou a organizar excursões, levando grupos para Senegal e Gâmbia, mais ao norte de Gana e onde isso também ocorria. Ou seja, a história do colonialismo sendo colonizada. A verdade, com isso, vai se tornando residual, sendo reescrita e incorporada. Daí a importância de obras como essa de Saidiya Hartman serem conhecidas, lidas e divulgadas.

A autora, que dá aulas na Universidade Columbia, em Nova York, tinha o nome de batismo de Valarie. Foi durante a faculdade que optou por mudar para Saidiya – a pronúncia correta é como “sadia”, em português, com a diferença de que a letra “i” é mais alongada –, uma palavra do idioma suaíli. Ela também escreveu Vênus em Dois Atos, Cenas de Sujeição e Fim da Supremacia Branca. Essas três obras também estão traduzidas para o português.

31.10.2021

Ilustração registra massacre e captura de negros em Gana.
O primeiro embarque de escravizados daquele país para os EUA ocorreu no ano de 1619

O bônus de hoje é outra vez duplo, mas um tanto diferente. Primeiro apresento uma publicidade da TAP Air Portugal, que tem linhas aéreas ligando Lisboa e Acra, a capital de Gana. Ele mostra muito das belezas daquele país africano e uma série de lugares com sugestões de visita.

Na segunda parte do bônus, vemos Dançarinos de Velório, que são uma tradição ganesa que recentemente foi usada em muitos memes, aqui no Brasil. Os sepultamentos em Gana são tidos como ocasiões solenes, mas não necessariamente tristes. E eles são contratados para levar o caixão da pessoa morta até a sepultura, realizando coreografias.

3 Comentários

  1. Maravilhosa crônica que alia pesquisa sobre história de África, literatura da diáspora, arte e cultura. Verdadeiro documento etnográfico! Eu não conheceria de outro modo Saidiya Hartman, a escritora afroamericana cuja busca identitária nos leva a percorrer estes caminhos desconhecidos. Já a dança do caixão, sui generis, mostra as diferenças entre os rituais de morte dos povos africanos! Só tenho agradecimentos ao autor que nos inspira!

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