Eu sou o mais moço dos quatro filhos que meus pais tiveram. Aquele “temporão”, que vem quando ninguém mais imagina que a família ainda vá aumentar. Por causa disso, a diferença de idade em relação aos demais era bem razoável e eu, ainda adolescente, era o único que não havia saído de casa, quando meu pai faleceu. Passados tantos anos desse fato, ainda lembro seguido dele, de tudo o que aprendi com sua presença e do muito que poderia ter aproveitado, fosse eu um tanto mais inteligente. Mas, na reta final daquele convívio, eu não tinha o necessário discernimento que só o passar do tempo oferece. E seria injusto comigo mesmo imaginar que deveria ter mais maturidade, quando a vida me oferecia na época aquilo que a faixa etária atrai ao natural.

O adolescente precisa ser rebelde. Isso é da sua natureza. Nessa fase a gente acredita que sabe tudo, que não precisa de ninguém e que somos todos nós eternos. Somos super homens mesmo sem capa e sem voar, vivendo num mundo que sequer tem kriptonita. O que faz com que, não raras vezes, coisas essenciais nos escapem entre os dedos. Areia que escorre, como nas ampulhetas. A data comemorativa deste final de semana me levou a ficar pensando nisso, a recordar uma vez mais do meu pai, que não viu sequer eu entrar na faculdade; não presenciou as minhas vitórias e derrotas normais da vida adulta; não conheceu o casal de netos que eu acabei dando a ele. Mas essa autocrítica de agora, baseada numa revisão normal que se faz – ou pode fazer – da vida, de tempos em tempos, perde um bocado de eficácia porque tem uma premissa irreal, que é examinar o passado com olhos e conhecimento de hoje em dia. O que, por óbvio, não pode funcionar.

Evidente que eu poderia ter sido um filho melhor. Ter entendido o seu momento, as suas circunstâncias de vida e mesmo a sua trajetória, que teve muito de superação e brilhantismo. Ele estudara tanto quanto foi possível, trabalhou muito, nos deu uma vida tão confortável quanto pode alcançar. Era honesto, fazia muitos amigos, tinha um riso alto e franco, completamente exposto e reconhecido. E sabia ser generoso como poucas pessoas conheci na vida. Liderou algumas instituições, com equilíbrio e segurança. E se colocava no lugar dos outros, com absoluta naturalidade. Nos seus últimos anos, vitimado por doença, por falsas amizades e ingratidões, perdeu muito do seu tamanho. Foi quando eu falhei, por não ter compreendido o desmoronamento involuntário da sua figura. Entretanto, ela foi sendo reconstruída por pedaços de memórias, sendo hoje uma estátua daquelas que ninguém iria incendiar.

Eu perdi meu pai, meu filho e meu único irmão – o Sérgio foi uma espécie de segundo pai para mim – ao longo dos anos. Me tornei especialista nesse tipo de dor, que também recebeu “reforço” com avós, tios e até primos. Mas no caso dos três, foi como cortes profundos na linha de descendência. Como galhos de uma árvore cortados sem cuidado algum, tipo o que tem sido feito em tantas ruas de Porto Alegre. Relações interrompidas sem que atingissem todo o potencial de troca que seria possível e desejável. Vontade imensa de que se pudesse os quatro sentarmos numa mesma mesa, dividindo alimento e relatos, expondo vontades e verdades, revendo caminhos, propondo um futuro. Claro que meu filho, que foi ainda quando criança muito pequena, teria que ter crescido nesse tempo. Mas seria algo que não tem preço. E que espero que um dia de fato possa vir a acontecer.

Como meu pai era de uma geração que tinha maior dificuldade de expressar sentimentos e admitir fraquezas, se tornava quase impossível ouvir dele um “eu te amo”. O que felizmente não aconteceu comigo, depois, com relação à Bibiana e ao Bolívar. Mas, devo admitir que essa “barreira” que sua educação criara me atingia do mesmo modo. E eu também não confessava a ele o meu amor. O que gostaria de ter feito. O que estou fazendo agora, com esse texto. Seu Walter, muito obrigado por tudo. Eu te amo como sempre amei e estou te compreendendo como nunca compreendi antes.

08.08.2021

Bônus 1: Música Naquela Mesa, de Sérgio Bittencourt, com Marina Aquino voz e violão. Essa canção foi uma homenagem do autor para seu pai, o músico Jacob do Bandolim, que faleceu em 1969 vitimado por um infarto fulminante. Há inúmeras versões, tendo sido gravada por Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Zeca Pagodinho e vários outros cantores.

Bônus 2: Música Guri, de César Passarinho, com o autor. Seu nome real era César Osmar Rodrigues Escoto, intérprete que simbolizava como nenhum outro a Califórnia da Canção Nativa, festival nativista da cidade de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Faleceu em 1998.

Recordações: Coloco aqui o link de acesso ao texto que escrevi sobre o Dia dos Pais, no ano passado. Naquela oportunidade foquei na minha experiência como pai da Bibiana. Desta feita, fui o filho do seu Saldanha.

3 Comentários

  1. Excelente texto amigo querido! O consolo e o esclarecimento que temos da doutrina espírita nos garante o reencontro com todas as almas queridas no momento adequado ao nosso aproveitamento. Obrigado pela reflexão! Grande Abraço!

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s