No início do mês de fevereiro de 1961, exatos 60 anos atrás, um juiz da comarca de Sorocaba, no interior de São Paulo, num arrombo do mais absoluto puritanismo e atraso, resolveu proibir beijos públicos na cidade. Segundo determinação deste senhor, de nome Manuel Moralles, se um casal desobedecesse a ordem poderia ser preso, pouco importando o momento e a circunstância. Manifestações explícitas de afeto ficariam permitidas apenas em ambiente privado. No mandato que expediu dizia que estes “são libidinosos e, portanto, obscenos”. Referia-se desde a beijos singelos, na boca, mas também “no pescoço, nas partes pudendas e etc., como o beijo cinematográfico, em que as mucosas labiais se unem numa insofismável expansão da sensualidade”.

A reação, capitaneada pela juventude local, foi imediata. E um protesto foi organizado boca a boca – não estou pretendendo fazer trocadilho algum, mas ainda não existia a internet – e cerca de cinco mil jovens se mobilizaram. Com cartazes incentivavam que todos fossem para praças e ruas, na noite seguinte, para um grande “beijaço”. Desta forma, não haveria nem forças policiais nem cadeia suficiente para deter e prender tantos “criminosos”. Num muro do centro surgiu uma pichação com a frase “O beijo é uma coisa iMoralles, não é mané?”. No horário marcado estavam lá entidades universitárias, representações sindicais, grupos de teatro e muita gente sem identificação, que simplesmente aderiu à causa. Uma passeata pacífica cruzou as ruas, até o ponto marcado, junto à Praça do Canhão. Então rolaram os beijos combinados, mas também muita pancadaria, porque policiais, tanto identificados como disfarçados que se infiltraram antes, buscaram cumprir a ordem judicial, impedindo “a desordem e falta de vergonha”. Viaturas começaram a circular pelo meio do povo, em grande risco à integridade de todos. Cada um que era detido tinha que apresentar seus documentos e se explicar, como se precisasse.

O beijo, visto hoje em dia como importante demonstração de afeto e de amor que podem fazer entre si dois seres humanos, não é hábito que sempre tenha estado conosco. Sabe-se lá quando, pela primeira vez na história, alguém resolveu colar seus lábios nos lábios de outra pessoa e talvez até misturar um pouquinho línguas e saliva. Mas o registro mais antigo é o encontrado entre hindus, cerca de 1.200 anos antes de Cristo. Está no livro védico Satapatha, que tem os textos sagrados em que se baseia o bramanismo – que é uma religião e filosofia que precede o hinduísmo, atribuindo a Brahma a importância primeira, como sendo ele o princípio criador. Aliás, esse mesmo livro tem várias outras referências que remetem à sensualidade. Também é possível citar o Mahabarata, um poema épico, obra com mais de 200 mil versos. Nele há uma frase que não deixa dúvida alguma sobre a que se refere: “Pôs a sua boca em minha boca, o que fez um ruído e produziu em mim enorme prazer”. Agora, se alguém deseja ler texto antigo que esclareça muito mais sobre isso, que se debruce sobre o Kama Sutra. Esta obra, que queiram ou não é uma referência entre tantas escritas, cuida não apenas de detalhar a prática e suas alternativas, como discute princípios morais e éticos do beijo em si.

Freud explica – e ele sempre explica tudo – que a boca é a primeira parte do corpo que usamos para descobrir a existência do mundo. Saciamos nossas necessidades básicas com ela, desde que sugamos o leite materno, na mais tenra infância. Então, o beijo seria o caminho natural para a iniciação sexual. Antropólogos acreditam que o beijo foi um comportamento apreendido, que teria se originado, provavelmente, pelo hábito ancestral de cheirarmos os corpos uns dos outros, algo vindo ainda de quando se vivia em cavernas. Numa época em que a sobrevivência era uma luta permanente, na qual éramos caçadores e caça, desta forma primária é que se identificavam os parceiros, inclusive os sexuais. Em tempos bem mais recentes, mais precisamente no século XVII, a Igreja Católica tentou inutilmente coibir a prática, algo já muito popular nas cortes de toda a Europa. Hoje esse papel castrador vem sendo desempenhado por outros ramos do cristianismo, mas se pode apostar que também será um esforço infrutífero. Ou alguém duvida que, felizmente, esse hábito veio para ficar?

09.02.2021

Foto de jornal da época, mostra os grupos se formando para o grande beijaço programado

No bônus musical de hoje a muito apropriada Beijar na Boca, de Cláudia Leitte.

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