Luís Augusto Fischer abre seu Dicionário de Porto-Alegrês dizendo ser ele “impreciso, precário, perecível, incompleto e várias vezes arbitrário”. Depois desses cinco adjetivos negativos, eu acrescentaria outros dois, esses positivos, mostrando a importância desta iniciativa: necessário e imprescindível. Além disso, mesmo sabendo que todo idioma é um elemento vivo e em constante mutação, tendo a achar ainda que no mínimo o perecível não está exatamente apropriado. É preciso acrescentar antes dele um “parcialmente”. Basta ver que a edição que eu tenho, a terceira, saiu ainda em 1999. Essa semana, passados 22 anos dela ter sido impressa, me diverti muito relendo alguns dos seus verbetes e identificando no mesmo momento pessoas, locais e oportunidades em que essas palavras e expressões são usadas. A obra assinala, com a compilação realizada pelo autor, uma identidade e um pertencimento que se precisa manter claros. Quem é de Porto Alegre – ou ao menos mora na cidade e a ama, uma vez que filhos adotivos são filhos do mesmo modo – não pode e não deve abrir mão desse privilégio tão singular.

Abobado, a fim, apatifar, às brinca, bola cheia, borra-bosta, bunda mole, camaçada de pau, cocuruto, confiar no taco, churras, courinho, cuzão, dentro dumas, de prima, descornado, deu prá ti, é bucha, encagaçar, ensebar, esquema, esquentado, faísca atrasada, fiadaputice, ficar mordido, fuca, fumeta, ganhada, gritedo, história, já era, lambuja, lomba, mal na foto, malecho, marrecão, matusquela, meia-foda, meter bronca, mistureba, mumu, muque, muquirana, na lata, não é mol, não tem erro, nas coxa, neca pau, níver, no grito, numa sentada, pânqui, par-de-vaso, parelho, paulera, pechada, pé no saco, pereba, pitoco, posudo, prensa, puta velha, qual é o pó?, rabudo, retoço, revertério, se faz de salame, sangria desatada, se abrir, se achar, se borrar, sumidão, tiriça, total e tramposo. Algumas dessas palavras e expressões, que exemplificam as centenas de verbetes existentes na obra, também são usadas em outros locais. Mas com certeza a acepção por aqui não é a mesma.

Porto Alegre é Demais”, já cantava Isabela Coronel Amilivia Fogaça de Medeiros – bota nome nisso! –, música composta pelo seu marido, um professor que a gente amava na adolescência e preferiu esquecer depois que se tornou político profissional e esqueceu suas origens. Realmente, esse é um lugar ímpar, também pela forma como sua gente se expressa, mas por várias outras peculiaridades. Que outra cidade tem a estátua de um laçador? Quantas pontes existem que levantam o vão central para a passagem de navios – isso agora foi resolvido com a inauguração da nova –, engarrafando uma estrada às vezes várias vezes por dia? Que outro povo se vangloria do pôr-do-sol, jurando que é o mais bonito do mundo? Porto Alegre sedia a maior rivalidade esportiva do Brasil, com o Grenal fazendo o Guaíba ferver, mesmo no mais forte dos invernos. Tem o Parque Farroupilha, sem jamais ter sido ocupado pelos farroupilhas. Tem uma Ipanema, sem mar; um bairro chamado Tristeza; o Menino Deus; um muro erguido para deter enchente que nunca mais ocorreu igual. Aqui se bebe chimarrão, feito com água quente, mesmo quando o verão faz perto de 40 graus. Existe o Brique da Redenção, a maior Feira do Livro de todo o país e uma bela cobertura vegetal, apesar de todo o esforço da recente administração em mutilar nossas árvores. Aqui nasceram Lupicínio Rodrigues, Elis Regina, Ieda Maria Vargas… Criamos o Orçamento Participativo e o Fórum Social Mundial.

Adotei Porto Alegre. Hoje moro na cidade, pelo segundo período na minha vida. Ela até pode não ser a mesma de antes, estando mais triste e menos limpa. Mais violenta e menos aprazível. Mas seguem não faltando razões para que seja amada. Povoada por açorianos, no seu nascimento, hoje terra de gente de tantas terras, pode ser vista como provinciana e metrópole, ao mesmo tempo e na medida certa. Igual a tantas, mas peculiar ao ponto de ser levada como tatuagem na alma de quem, apaixonado por ela, precise por algum motivo mudar-se para outro local. Porto Alegre é mesmo singular. Tanto quanto o seu linguajar.

20.01.2021

Hoje temos bônus duplo. Primeiro a música Porto Alegre é Demais, cantada por Isabela Fogaça. Depois, a declamação do poema O Mapa, de Mário Quintana. Ambas as manifestações são olhares amorosos sobre a cidade.

6 Comentários

  1. Amo esta Cidade que adotei como minha…
    Nasci em Cruz Alta, fui para Palegre em 1961 para faculdade, morei em diversos lugares, mas agora desde 1986 adotei como minha….e me encanto sempre….e tenho privilégio de morar no Menino Deus.

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