Vamos começar essa conversa com a afirmação necessária de que o gaúcho livre, idealista, heroico, honesto e justo é uma criação, um mito. Não que não se tenha tido nunca – ou se tenha hoje – algumas ou todas essas qualidades. Mas as narrativas estabelecidas ressaltam isso como sendo o padrão. O que passou a acontecer em especial depois que a mídia do estado, através dos seus meios mais influentes, mas também com a repercussão dada pelos demais, sustentou subliminarmente essa verdade criada até ela se tornar uma certeza corrente, uma convicção. Disso resulta o grande problema de ficar difícil a proposição de qualquer debate sério, que busque rever a história e desmistificar o imaginário coletivo que foi sendo criado.
Na verdade, não apenas a imprensa – essa por interesse econômico –, mas também a literatura local, encontraram terreno fértil para relatos estagnados num passado que, além de tudo, não aconteceu do modo como é contado. Os tradicionalistas são consequência disso, mas também causa ao reproduzirem a cristalização de um tempo idealizado. A Revolução Farroupilha, por exemplo, passou a ser contada como sendo a revolta de um povo contra a opressão do governo central. Só que o descontentamento era apenas da elite, formada por estancieiros insatisfeitos com a cobrança de impostos sobre o charque e outros produtos. O desacordo nunca foi devido a qualquer preocupação com o empobrecimento local, uma vez que existia muito distinta a diferença de classes sociais, sem que isso causasse sequer indignação e muito menos um levante. Assim, a peonada e muitos negros escravizados foram levados a lutar por interesses que não eram seus, mas dos patrões.
Nem precisa ser muito atilado para perceber a contradição entre os dizeres estampados na bandeira do Rio Grande do Sul – liberdade, igualdade e fraternidade –, que era empunhada com orgulho pelos que vendiam escravos para custear a luta que foi se tornando emancipatória. E falo aqui em emancipação no sentido territorial, não social. O líder maior do movimento, Bento Gonçalves da Silva, quando morreu, dois anos após o término do conflito, ainda tinha como “propriedade” 50 negros. Republicanos os farroupilhas foram se tornando, na sua maioria. Idealistas e abolicionistas, jamais foram. E, para que a doutrinação e a meia verdade não sigam prosperando, já passou da hora de darmos a devida atenção a historiadores sérios, como Tau Golin, Décio Freitas e Sandra Pesavento, entre outros. Esses nunca se furtaram de descrever uma realidade que segue sendo considerada imprópria pelos que lucram com a ignorância da maioria quanto à verdade dos fatos. A democracia pastoril é uma falácia. Os peões sempre foram “de casa”, mas dormiam sobre pelegos, nos galpões. Eram “da família”, mas dividiam o matambre nos abates, jamais provando o filé.
Agora, por que seguimos comemorando o 20 de setembro com a altivez e o orgulho de uma vitória, se ela não houve? Porque o resultado dos dez anos de luta e de perda de vidas teve, ao mesmo tempo, derrotados e vencedores entre os farroupilhas. Perdeu a maioria, todos aqueles que acreditavam que esse poderia ser um caminho para a tal igualdade já citada. Os miseráveis continuaram miseráveis. Mas ganhou o poder econômico vigente antes, que se perpetuou depois do acordo de paz. Os militares sulistas de alta patente foram todos incorporados ao contingente imperial, sem quaisquer punições. Os estancieiros continuaram com as suas propriedades. E desses grupos nasceram os relatos. As guerras são sempre contadas pelo ponto de vista de quem ganha. Nesse caso, no campo de batalha a vitória foi imperial, mas ficou interessante até para eles deixarem que a história fosse escrita de modo diverso. Porque era importante acalmar ânimos.
Assim, os tradicionalistas de hoje em dia seguem comemorando a derrota da maioria. Fazendo de conta que ela não aconteceu, é claro. E a população segue distante de uma informação mais abrangente, aprofundada e que permita uma autocrítica necessária. Não para desmontar a nossa história, mas para aprender com ela. Não para passar a se envergonhar do passado, mas para usar o seu exemplo na construção de um futuro mais promissor para todos. Erros podem iluminar muito melhor os caminhos do que o falso brilho de acertos imaginários.
20.09.2020

Bônus: a música Desgarrados, de Sérgio Napp e Mário Barbará, grande vencedora da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, em 1981. Esta gravação é com a Orquestra de Câmara da Ulbra, sob a regência de Tiago Flores. O solista é Chico Saratt, em arranjo de Iuri Corrêa.
Belo texto como sempre…carregado de realidade. Esclarecer é a nossa missão, mas faremos sempre o papel de ressentidos, pois nadaremos contra a maré….muitos preferem a ilusão.
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Nadar contra a maré muitas vezes nos fortalece os braços e o ânimo, amigo Rogério.
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Excelente. parabens.
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Obrigado Rafael! Abraço!
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Reflexão critica necessaria e oportuna Solon! Identificar e explicitar distorçoes historicas, é parte do processo para parar de repetir injustiças, silenciamentos e opressões, e escrevermos outra história. Abraços.
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É bem difícil coibir injustiças e opressões. Mas silenciar não podemos, jamais. Quanto mais vozes se fizerem ouvir, mais perto estaremos de um enfrentamento eficiente disso tudo. Abraço!
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