A história do Rio Grande do Sul poderia ser melhor contada nas escolas e mais conhecida pela população. Há episódios que só a leitura esclarece e se faz necessário que isso seja incentivado, para que se vá além dos relatos demasiado ufanistas sobre a Revolução Farroupilha, nossa derrota comemorada. Há passagens gloriosas não valorizadas e episódios vergonhosos que não deveriam ser escondidos, estilo Batalha dos Porongos – mas esse é assunto para outra oportunidade. Hoje escrevo sobre o massacre dos índios guaranis, nos Sete Povos das Missões.
Missionários jesuítas haviam instituído 30 povos junto com os índios, em área que ocupava parte de territórios atuais do Brasil, Argentina e Paraguai. Sete deles, na margem esquerda do Rio Uruguai, equivaliam a perto da metade do que é hoje o Rio Grande do Sul. Esses tinham por volta de 70 anos de existência quando foi assinado o Tratado de Madrid, entre Portugal e Espanha, em 13 de janeiro de 1750. Esse documento estabelecia novas divisas para as colônias de ambos os países, combinando também um troca de áreas. Isso porque os portugueses tinham a Colônia de Sacramento, no atual Uruguai, bem em frente a Buenos Aires, enquanto os espanhóis mantinham os Sete Povos. Invasões simultâneas que seriam resolvidas de forma amigável.
A questão é que os moradores ancestrais da área não foram consultados sobre essa decisão – a estimativa é da existência de perto de cem mil índios guaranis em todo o território, com 30 mil deles nos Sete Povos. Receberam apenas a ordem para se retirar para outra área, num prazo de seis meses. Teriam que deixar para trás edificações, áreas de plantio, definir o que fazer com o gado e, principalmente, abrir mão da terra sagrada onde estavam sepultados seus antepassados. Essa decisão também foi tomada porque portugueses e espanhóis na verdade temiam que a região terminasse por se tornar autônoma, uma vez que os jesuítas respondiam diretamente à Roma, sem que as autoridades dos dois países fossem consultadas para nada. Ou seja, a troca estaria resolvendo um problema e antecipando solução para outro.
Uma comitiva comandada por dois nobres, um de cada país, e composta por geógrafos, cartógrafos e engenheiros contratados, veio fazer a demarcação. Mas foi atacada no caminho pelos índios, que não aceitavam a situação, em julho de 1753. Os guaranis mataram 230 espanhóis e capturam outros 74. A reação foi violenta. Os portugueses enviaram 1620 homens com armas de fogo, lanças, canhões e explosivos, 73 carroções, mil cavalos e seis mil cabeças de gado para alimentação da armada. Os espanhóis, 1670 homens – 75% deles não eram soldados do corpo regular daquele país europeu, mas argentinos que haviam sido arregimentados em Corrientes, mercenários contratados por estancieiros que tinham informações sobre supostos tesouros nas missões e haviam recebido permissão para saqueá-los.
A absurda desigualdade de forças, com os índios tendo armas muito mais rudimentares, levou a um inevitável massacre. As Guerras Guaraníticas duraram apenas dois confrontos. No primeiro, uma breve escaramuça, o líder Sepé Tiarajú foi ferido, preso, torturado e morto, tendo sua cabeça separada do corpo para servir de exemplo. No segundo, em campo aberto, os guaranis liderados por Nicolau Nhenguiru foram dizimados. As milícias correntinas continuaram matando os índios, mesmo após eles terem se rendido. Execução sumária mesmo – veja que não é de hoje que milicianos detestam índios. O resultado, segundo contagem dos portugueses, foi a morte de 1730 guaranis, tendo outros 127 sido presos e estimam que 326 conseguiram escapar. Os corpos dos vitimados ficaram insepultos. Os que estavam nas missões se retiraram para as outras reduções, depois de queimar plantações, pomares e prédios. As ruínas estão até hoje no lugar como um símbolo de modelo de desenvolvimento, um experimento civilizatório que estava dando certo, com um sistema econômico baseado na partilha. Agora, um dos pontos turísticos do Rio Grande do Sul; antes, um sonho iniciado com suor e terminado com sangue.
12.07.2020
O bônus de hoje traz o ex-governador Olívio Dutra declamando o poema Lunar de Sepé, de autoria de Simões Lopes Neto, com Jair Medeiros ao violão.
A nossa história recheada de fatos vergonhosos. Conhecer a história entristece. O processo civilizatório sempre foi genocida e ganancioso, disfarçado de cruzadas religiosas.
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Conhecer a história, mesmo quando há passagens tristes, se faz necessário para o futuro ser melhor. Abraço!
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indígenas são minha paixão.
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Obrigado pela leitura. Abraço!
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Muito bom texto e o Olívio Dutra declamando Simões Lopes Neto é especial por demais.
Obrigado
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Agradeço, Otávio! E espero continuar merecendo o prestígio da tua leitura, em outras postagens. Abraço!
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