O GURI E SUAS PARÓDIAS

É bastante provável que um grande número de gaúchos não faça a menor ideia de quem seja Jair Kobe. Mas ouso acreditar que a maioria deve conhecer o Guri de Uruguaiana. A criatura foi superando o criador, assim como ocorreu com Iotti e o seu impagável Radicci. Quanto a mim, fiquei sabendo dele ainda na faculdade, em 1982, quando comprei um LP independente lançado pelo Canto Livre, grupo musical aqui da terrinha e do qual ele era integrante. Tenho até hoje. Cinco faixas no lado um e mais quatro no lado dois, todas elas assinadas por Sergio Napp, com parcerias – cinco delas com o próprio Kobe. Está incluída uma interpretação da magistral Desgarrados, com a qual Napp e Mário Barbará ganharam a Califórnia da Canção Nativa, de Uruguaiana, no ano anterior. Eram sete integrantes muito bons – além dele, Elaine, Miriam, Selma, Vânia, Fernando e Jairo. E a foto de capa mostra todos eles muito jovens, incluindo o Guri, antes de ser assim chamado, crespo e magrinho.

A carreira solo de Jair Kobe, pelo menos no que tange à veia humorística revelada, começou bem depois. Foi em 2001, quando ele apresentou o show Seriamente Cômico, no Teatro do Ipê. Nessa época ocorreram as primeiras aparições do Guri de Uruguaiana, que terminou seguindo um percurso que inclui, além do teatro, também rádio, televisão, produção de DVDs e incursões pela internet. Mas o personagem ganhou notoriedade mesmo foi pelas inúmeras versões que conseguiu criar do Canto Alegretense, de Nico Fagundes (1934-2015), que se trata quase de um hino feito em homenagem à terra natal do autor. Isso rendeu inclusive o título de cidadão, que lhe foi conferido pela divulgação que fez do município.

A paródia não é uma imitação, nem muito menos plágio. É a recriação de uma obra já existente, vista sob novo ponto de vista, inserida em um contexto diferente. Ela pode ser feita a partir de texto literário, de música, de peça teatral. O objetivo na maior parte das vezes é satírico ou jocoso. Mas pode ser usada para a transmissão de uma mensagem diversa, publicitária ou política, por exemplo. Isso é relativamente comum de vermos em anúncios e jingles. Em geral a obra primeira é consagrada, o que faz com que ocorra ao natural a associação. E tudo se desenvolve num conceito de intertextualidade. No livro Paródia, Paráfrase & Cia, de Affonso Romano de Santanna, lançado em 1988 e com edições posteriores, o autor explica bem os sentidos e usos desses recursos. Defende, por exemplo, que na Literatura existem três tipos de paródias. A verbal, que altera palavras do texto original; a formal, que usa o estilo de um escritor; e a temática, que faz uma caricatura sobre a produção do outro. Na mesma obra o autor relata que o termo foi institucionalizado ainda no século XVI. No Brasil, a paródia teve especial relevância no modernismo e no surgimento da poesia marginal.

No rastro de apresentações solo do Guri surgiram alternativas. Como o seu grupo The Guritles – assim mesmo, como sendo um The Beatles gaudério. Com ele fez uma recriação memorável: Help com sotaque de ingleses cantando em português. O quarteto tinha, além de Jair Kobe e Vitor Leal, que se tornou seu fiel escudeiro Licurgo, o gaúcho emo, ainda Daniel Torres e Rui Biriva (1957-2011). Mas o Canto Alegretense, seu “carro-chefe”, não foi cantado só como rock. Também ganhou versões como reggae, funk, bossa nova, sertanejo e MPB.

Jair é um nome de origem hebraica que significa “aquele que ilumina”, algo desacreditado pela escuridão do que nasceu em Glicério, interior de São Paulo. Mas Kobe, que é natural de Porto Alegre, ainda consegue isso. Guri é um termo vindo do tupi gwi’ri, como aquele povo indígena se referia a menino e os gaúchos seguiram fazendo. Este teria vindo ao mundo em Uruguaiana, como se sabe. A música que o consagrou é do Alegrete, mas sua fama se espraiou pelo Rio Grande e seguiu além do Mampituba. Ou seja, com ele conseguimos ter uma espécie de bairrismo globalizado. Então, “só se fala noutra coisa”, como diz um dos seus bordões.

28.07.2020

Bônus: Clip com a música Tem Pala, uma paródia de Trem-Bala, de Ana Vilela. O Guri de Uruguaiana (Jair Kobe) e Licurgo, o gaúcho emo (Vitor Leal), estão acompanhados por Luciano Camargo, na gaita, e Álvaro Luthi, com baixo e voz. Foi gravado no Vila Ventura, em Viamão. Agora, em pleno inverno – que costuma ser rigoroso aqui no Sul – espero que ela estimule a doação de agasalhos para os necessitados.