SOU MAIS O SACI PERERÊ
Existe uma fabulosa quantidade de histórias e personagens que habitam o imaginário brasileiro, formando o repositório de lendas e crendices que estabelecem o nosso folclore. Uma dessas figuras mais marcantes é um negrinho que tem apenas uma perna, mas consegue se deslocar com imensa facilidade por nossas florestas – deve estar enlouquecido com o atual ritmo do desmatamento. Tem cerca de meio metro de altura, mas é gigante na hora de realizar traquinagens. Veste apenas uma espécie de calção e usa um gorro vermelho. E tem o hábito politicamente incorreto de fumar um velho cachimbo. O Saci Pererê nasceu no sul do Brasil, numa junção de influências das culturas indígena e africana, mas depois se tornou conhecido em todo o território nacional.
Na lenda, ele é um ser mítico e endiabrado – no sentido de brincalhão. Seria ele que assustaria os cavalos nas fazendas, durante a noite e ainda daria nós e tranças em suas crinas. Também seria o responsável por incomodar viajantes pelas estradas interioranas, danificando os freios das carroças e forçando paradas. Depois, ficaria ao longe, assoviando de modo estridente. Nas casas, seria o responsável por queimar comidas que estivessem sendo feitas e por azedar outras que já estivessem prontas. O redemoinho que sua passagem ocasiona, levantaria o lixo já varrido, apagaria as lamparinas e faria desaparecer pequenos objetos. Fico pensando se, modernamente, não tem também o dedo dele no desaparecimento de um pé de meia – e somente um, não o par – quando se coloca nas máquinas de lavar roupa. Sendo ele perneta, mais fácil é de se entender esse sumiço.
Há quem conte não ser apenas um saci que existe, mas um grupo que se reveza e isso explicaria ele estar em tantos lugares ao mesmo tempo. Também falam que ele vive exatos 77 anos, antes de se transformar em um cogumelo venenoso – o que pode ser simples maldade de quem nunca gostou dele – conhecido como “orelha-de-pau”, que nasce nos ocos de algumas árvores. Mas, verdade ou não, o assunto saci é tão sério que já foi tema de muitas dissertações e teses, de mestrado e doutorado. Este pessoal da academia garante que a lenda aponta para o nascimento da figura no final do Século 18 – ele seria mais novo que o Curupira, outro personagem cujos relatos são bem mais antigos, aparecendo pela primeira vez em 1560.
Segundo esses estudos, tudo começou nas aldeias, com a tradição oral do çaa cy perereg (nome no idioma tupi-guarani). Isso explicaria a razão de ser conhecido também no Paraguai, na Argentina e no Uruguai, já que essas tribos viviam em vários territórios. Só que nos países vizinhos o nome seria yacy-yateré e haveria algumas diferenças na figura: ao invés de careca, teria cabelos louros. E usaria uma varinha mágica e chapéu de palha. Também suas ações seriam mais extremas, como roubar e ensurdecer as crianças. A perna única seria explicada pela influência africana: teria perdido a outra numa luta de capoeira. Outro detalhe importante é que em todos os lugares ele é descrito como um protetor das matas, o que poderia indicar um derivativo da lenda do Curupira.
O livro Sacy-perepê: resultado de um inquérito, publicado por Monteiro Lobato em 1918, foi o primeiro sobre esta lenda. Em 1921 ele adaptou a história em O Saci, voltado para o público infantil e integrando a coleção do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Isso contribuiu para a difusão da história. Hoje ele é um dos mascotes do Sport Club Internacional – o que já não me agrada muito, por eu ser gremista –, juntamente com o Macaco Escurinho. Mas algo que me agradaria bastante seria ver algum movimento que tornasse essa lenda motivo de um evento que valorizasse nosso folclore. Os brasileiros, nos últimos tempos, importaram sem nenhum motivo que não o comercial, o Halloween, que é o Dia das Bruxas norte-americano. Sendo sincero, não vejo graça alguma naquilo: guloseimas ou travessuras. Travesso por travesso, sou muito mais o Saci.
06.07.2020
