Parece que foi ontem e foi mesmo. Me refiro ao aniversário da Revolução dos Cravos, movimento que em 25 de abril de 1974 pôs fim à ditadura que mantivera Portugal sob o jugo do fascista Antônio Salazar, até 1968, e de Marcello Caetano, nos seis anos seguintes. Suas consequências foram, entre outras, a retomada da democracia e o restabelecimento das liberdades individuais. E o nome dado à conquista do povo veio do fato de que as pessoas, nas ruas, distribuíam cravos para os soldados do Exército, que pela primeira vez em muito tempo não as reprimiam. Sobre isso, com maiores detalhes, escrevo mais abaixo.

Revendo o contexto histórico, Portugal era uma monarquia constitucional até 1910. Em outubro daquele ano foi proclamada a república, que era ainda jovem e incipiente quando, quatro anos depois, o país participou da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Este fato gerou uma grave crise econômica, com repercussões sociais. No aspecto político, esse período pós-guerra se tornou ainda frutífero, em boa parte da Europa, para ideias autoritárias. Como o fascismo italiano, com Benito Mussolini. Foi assim que os portugueses se viram envolvidos com um golpe de Estado, em 1926, perdurando até 1933. Uma nova Constituição foi então promulgada, ao mesmo tempo em que surgia com força a figura de Antônio Salazar. Ele era o primeiro-ministro e o texto legal lhe garantiu plenos poderes, que ele exerceu cerceando a liberdade de expressão e os direitos individuais. Deste modo, passou a governar com mão de ferro, não permitindo mais sucessão e alternância no poder.

O salazarismo se constituiu a partir de atitudes e com características semelhantes ao que se viu na Itália. O descrédito proposital da política e dos partidos tradicionais, o uso da religião, a exaltação da figura de um líder, a censura de toda e qualquer crítica e um nacionalismo falso – se você está lembrando agora de um outro “mito”, saiba que a semelhança não é mera coincidência. Isso conseguiu estabelecer um autoritarismo que durou quatro décadas, se tornando a mais longa ditadura da história da Europa.

Incrível é que Salazar não teria se afastado do poder se não fosse uma queda que sofreu, durante suas férias. A cadeira de madeira onde ele se sentava estava tomada de cupins, quebrou e ele foi ao chão, batendo com a cabeça. A consequência foi um derrame que primeiro o afastou temporariamente do poder, mas que o retirou do comando conforme o quadro se agravou. José Saramago relatou essa história no seu conto Cadeira, um dos que compõem o livro Objecto Quase, publicado em 1978. E o referido conto foi a “matéria-prima” da minha dissertação de mestrado em Letras, A Construção de Cadeira: memória, literatura e história no conto de José Saramago, defendida em 2017.

Voltando ao relato histórico, Marcello Caetano não tinha a mesma força de Salazar. Ao mesmo tempo, eclodiam revoltas nas colônias, com grupos armados buscando libertar Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, o que forçava Portugal a manter destacamentos nestes locais, o que era motivo de descontentamento da população e dividia também o exército. Estava criado o clima propício para a libertação, em duplo sentido, tanto da metrópole quanto dos territórios conquistados ainda quando das grandes navegações.

Na véspera da revolução, as rádios das Emissoras Associadas de Lisboa tocaram diversas vezes a música E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho. Essa era a senha para que a população se preparasse para o processo. E no dia 25 ela foi substituída por Grândola Vila Morena, de José Afonso, para que todos soubessem que ela começara. Nas ruas os soldados, sem o devido comando e eles próprios desejosos de que houvesse afinal uma mudança no país, permaneciam passivos. Então outro fato aconteceu, tendo se tornado marcante por puro acaso.

Celeste Martins Caeiro trabalhava no restaurante Franjinhas, na Rua Braancamp, que comemorava o seu primeiro aniversário. Era inovador, inaugurando o serviço de self-service, até então não conhecido. O seu proprietário havia comprado vários molhos de flores no Mercado da Ribeira, para oferecer aos fregueses. Mas não pode abrir, em função do acontecimento que tomava as ruas. Assim, distribuiu as flores para seus funcionários, quando os liberava. Celeste voltava para casa com uma boa quantidade de cravos, quando se deparou com os soldados. Um lhe pediu cigarros, que ela não tinha. Então, colocou um cravo vermelho no cano de seu fuzil. Os demais também pediram e ela os distribuiu todos. As habituais vendedoras de flores do Rossio, quando viram a cena, decidiram multiplicar o gesto, o que foi imitado por mais e mais pessoas, a ponto de terminar batizando a revolução.

Marcello Caetano renunciou e foi exilado para a Ilha da Madeira. Alguns aliados de Salazar ameaçaram uma resistência inútil – sequer tinham como acampar nas portas dos quartéis. As poucas tentativas de dar um novo golpe, ainda perpetradas pelas forças conservadoras, todas elas fracassaram. E a liberdade conquistada se consolidou.

26.04.2023

Cravos vermelhos foram sendo colocados nos canos dos fuzis

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O bônus musical de hoje é Tanto Mar, de Chico Buarque de Holanda. Ele compôs essa canção em 1978, para homenagear os portugueses, que haviam encerrado o seu longo período ditatorial. Naquela época o Brasil ainda seguia sendo governado pelos militares que haviam tomado o poder em 1964.

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