OS URUBUS E A IGREJA

Das janelas da frente do meu apartamento, em Porto Alegre, enxergo a Igreja Santa Cecília. São poucas quadras de distância e a diferença de altura, em função do prédio estar em cota mais elevada, permite uma vista de fato privilegiada. E não apenas daquele templo religioso, que nos brinda vez por outra com os sinos chamando os fiéis para as missas. Fiéis também são dois urubus, imagino que um casal, que chega todo o final de tarde e pousa em um dos braços da cruz. Sempre do mesmo lado, como se fossem cadeiras cativas. Nunca, nunca mesmo, optam pelo outro e não sei explicar a razão.

O urubu é uma ave que pertence à família dos abutres. Entre essas, se trata de uma das mais frequentemente observadas. Tem o hábito de realizar voos planados aproveitando correntes térmicas, pode alcançar grandes alturas e permanece em atividade durante todo o dia. Quando na natureza, em média duram uns dez anos. E sua “tarefa” é manter limpo o ambiente, uma vez que eliminam carcaças de animais mortos, incluindo até seus ossos. Cerca de 95% dessas sobras desaparecem devido à ação dos urubus. Nas cidades, são atraídos pelo lixo urbano e não raras vezes ocupam prédios altos. Chegam inclusive a por os seus ovos em coberturas. Em grandes centros, como São Paulo, estão se tornando uma verdadeira praga.

Muito resistentes, esses animais conseguem ficar dias sem comer e têm a capacidade de voar cerca de cem quilômetros atrás de alguma carniça. A fêmea costuma por dois ovos em cada ninhada, sendo que eles são incubados tanto por ela quanto pelo macho, por período entre 32 e 39 dias. Os jovens fazem seu primeiro voo depois de uns três meses de vida. Desconheço se o casal que observo tem ou teve algum filhote.

Crendices populares brasileiras associam a figura do urubu a maus presságios. E acham que ter uma dessas aves pousada na residência, ou mesmo voando sobre ela, não é nada bom. Mas não acredito que a igreja esteja sofrendo qualquer problema devido aos inquilinos, mesmo que eles sejam indesejados. Entre os maias, abutres também eram tidos como agentes regenerativos da energia contida na decomposição orgânica. Seriam magos garantindo o ciclo da renovação, da purificação. Na arte egípcia são essas aves que absorvem cadáveres e os devolvem à vida novamente, sendo a representação da perpétua transmutação. Nas tradições greco-romanas, por sua vez, são pássaros adivinhatórios.

Desde os primórdios da cidade de Porto Alegre, Santa Cecília está presente na devoção de fiéis. Uma paróquia dedicada, entretanto, foi criada apenas no Século XX. A decisão foi tomada em 1941, quando foi proposta a criação de uma nova, que ficasse na confluência de outras três já existentes: São Sebastião, Nossa Senhora da Piedade e São Francisco. O objetivo era atender melhor às necessidades espirituais dos moradores da região. O prédio veio apenas 11 anos depois. A fachada da igreja – foi inaugurada em 1952 – tem linhas modernistas e é dominada por um arco redondo, com vitral em cruz grega no interior. Ele representa Santa Cecília, tocando harpa e cercada por anjos.

Existe um pequeno lance de degraus na entrada, com uma inscrição gravada em pedra do lado esquerdo. Ela assinala o local onde foi colocada uma porção de terra trazida especialmente da tumba onde descansa o corpo da Santa, em Roma. O interior é amplo e despojado, estando a área dividida em três naves que estão separadas por uma série de arcos apoiados em colunas. O local merece ser visitado, mesmo por quem não é católico, pela sua beleza e harmonia tranquilizadora. E quem fizer isso nem precisa pensar nos “moradores” que passam as noites na sua cruz.

16.06.2022

O bônus de hoje é outra vez duplo. Primeiro, o clipe da música Urubu Rei, com Ana Cañas, gravado ao vivo. Logo após, o áudio de Urubu Tá Com Raiva do Boi, com Baiano e Os Novos Caetanos.

Urubu Tá Com Raiva do Boi, com Baiano e Os Novos Caetanos.