O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, realmente fez escola. Não por suas ações ou competência para o cargo, porque essa ele nunca teve. Mas pela expressão que usou em uma famosa reunião do ministério de Bolsonaro, cuja gravação na íntegra se tornou pública e horrorizou as pessoas minimamente centradas. Ele queria que fosse aproveitado o momento em que a atenção das pessoas estava quase que totalmente voltada para a pandemia, para aprovar toda a sorte de barbaridades pretendidas pelo governo. E fez uso do termo “passar a boiada”. O que agora tem sido tentado por outros níveis de poder, na nossa tão maltratada República.

O prefeito de Porto Alegre, por exemplo. Sebastião Melo encaminhou para a Câmara de Vereadores projetos que na prática criam um plano diretor paralelo, mas focado em apenas três áreas da cidade: o Centro Histórico, Extremo Sul e Quarto Distrito. Na realidade, o objetivo único e exclusivo dessas propostas é facilitar a especulação imobiliária, mesmo que isso venha a causar problemas sérios para a maioria da população da Capital. Claro que os textos enviados não admitem isso, mascarando as reais intenções com a doce cobertura de palavras e promessas cuidadosamente escolhidas.

O primeiro a passar pelo crivo dos vereadores trazia o pomposo nome de Programa de Reabilitação do Centro Histórico, tendo sido aprovado em sessão extraordinária da Câmara de Vereadores, dia 24 de novembro. Com isso foram liberados 1,180 milhão de metros quadrados para que construções sejam erguidas nas avenidas Júlio de Castilhos, Mauá e Voluntários da Pátria. Mais do que isso, foi prevista ainda a isenção de qualquer pagamento por construir além dos limites preestabelecidos para cada terreno, em obras que iniciem nos próximos três anos.

Outra sessão extraordinária da Câmara de Vereadores aprovou, na última segunda-feira, dia 20 de dezembro, com 24 votos favoráveis e 12 contrários, proposta de alteração do regime urbanístico da área conhecida como Fazenda do Arado, no extremo-sul. Fica autorizado o parcelamento do solo dos 426 hectares, que também são reclamados como território original pelos indígenas. Haviam nove emendas, mas oito foram rejeitadas. Entre as que não passaram estava a que mantinha como público o espaço junto à orla, permitindo acesso universal à população. Desse modo, a praia será privativa de quem adquirir os terrenos, onde deverá ser construído um condomínio fechado e de luxo. Também será permitido, por omissão dos vereadores, que aterros sejam feitos no Lago Guaíba. A única coisa que impede ser definitiva a decisão tomada é que ainda existe uma disputa judicial, prevista para ser resolvida em janeiro.

Há ainda o projeto que leva o nome de Programa +4D, voltado para o Quarto Distrito, que é a área que começa nas proximidades da estação rodoviária e se estende para o norte, na direção da divisa com Canoas. Construtoras estão aguardando pelos encaminhamentos, que devem ocorrer logo, já com uma proposta de construção inicial de nove edifícios onde agora existem aqueles armazéns do cais do porto, ao lado da Avenida da Legalidade – ou Avenida Castelo Branco, para quem segue desejando homenagear ditadores. E sem limitação de altura, o que privatizará a vista do Guaíba. Ainda irá criar uma espécie de paredão a deter o vento, aumentando a temperatura na área próxima. Seguem-se vários outros problemas, que foram “esquecidos” no texto, mas que se podem lembrar facilmente. A rede de esgotos é insuficiente para suportar tal acréscimo populacional; a mobilidade será ainda mais prejudicada, onde o trânsito já está caótico; e não haverá acesso fácil aos prédios, uma vez que os trilhos do Trensurb correm ao lado.

Importante observar que toda essa preocupação por “melhorias” ocorre apenas em três áreas que ficam junto ao Lago Guaíba. Nenhum cuidado novo está sendo considerado para áreas menos nobres, nem para as periferias que seguem sem estrutura e desassistidas. Outro fato interessante, quando se acompanha textos e pronunciamentos oficiais, é o verdadeiro fascínio pela palavra “flexibilização”. Flexibilizaram inclusive as audiências públicas, que não têm sido feitas como a lei determina, tornando-se encontros quase secretos.

26.12.2021

No bônus de hoje o Baiana System interpreta uma música que faz referência à especulação imobiliária em praias de mar no Nordeste. Mas que se encaixa na questão que se verifica agora junto ao Lago Guaíba, em Porto Alegre. É Lucro (Descomprimindo), de Russo Passapusso e Mintcho Garrammone.

2 Comentários

  1. Exatamente como já era de se esperar. Elegemos para prefeito o vice que coordenou as “obras copa”, muitas desnecessárias, outras sacrificando árvores plantadas por estudantes que cresciam com elas. Numa fissura por obras que acabaram levando mais de uma década para a sua conclusão, desmentindo a urgência e denunciando o oportunismo. O que se vê hoje em Porto Alegre é o retorno da ganância que embala alianças entre o poder público e o empresariado. Usam o voto como chave para abrir de vez as porteiras. Lastimável, previsível.

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