AS DEMISSÕES VOLUNTÁRIAS
A pandemia trouxe, no mundo todo, alguns desajustes na economia. Mas eles não foram uniformes, se considerarmos tanto os diferentes países e seus potenciais, quanto os diversos segmentos da atividade econômica. Na verdade, alguns dos setores até se beneficiaram com ela. Entretanto, não se pode negar que aqui no Brasil, por exemplo, ela agravou um quadro de desemprego já existente e sério antes do surgimento da Covid-19. Este era decorrente da política desastrosa de Paulo Guedes, de destruição da indústria nacional, um imenso apetite privatizante, cortes nos investimentos públicos e retirada de direitos com precarização da força de trabalho.
Nos Estados Unidos, no entanto, um fenômeno totalmente novo surgiu nos últimos tempos e está causando surpresa, por ser inusitado. Cresce o número de pessoas que estão abandonando seus empregos, de forma voluntária. Num quadro no qual, em tese, quem está empregado deveria ficar satisfeito, porque ocorreu um encolhimento do mercado, esse grupo abre mão da suposta segurança por conta própria. Naquele país existe uma tradição de ser realizada e registrada uma entrevista de saída, feita pela gestão de recursos humanos das empresas, para saber a razão que leva a qualquer solicitação pessoal de desligamento. Querem entender os motivos, o que não deu certo, o quanto e por que suas expectativas foram frustradas. E isso tem ajudado muito os pesquisadores, que passaram a recorrer a esses bancos de dados para tentar compreender o fenômeno.
O primeiro pico se deu em abril de 2021 e até o final de novembro já eram mais de quatro milhões o número de pessoas que abandonaram os seus empregos a cada mês. Os especialistas terminaram por batizar o fato como a “Grande Demissão”, numa alusão indireta à “Grande Depressão” que ocorreu em 1929. Mas é evidente que são coisas totalmente distintas, tanto em causas como em consequências. Até agora, o que eles puderam apurar foi que existe uma desilusão em comum entre os demissionários e a não mais aceitação da cultura do trabalho tradicional.
Os norte-americanos parecem estar cansando de considerar o desempenho profissional como a prioridade de suas vidas. Não querem mais que sua realização pessoal seja projetada apenas na sua carreira ou ofício. A pandemia teria trazido uma nova percepção sobre a existência. E isso ficou ainda mais evidente pelo fato de que os casos de baixa não foram todos acompanhados, de forma imediata, por busca de novas colocações. E quando elas ocorrem, apontam para situações mais leves e favoráveis, se não em termos financeiros, na certa quanto à carga horária, o nível de estresse, o tempo de deslocamento. Cada vez menos pessoas estão dispostas a aceitar o esgotamento emocional que certas atividades lhes impõem.
A consequência é que essa deserção em massa está comprometendo a retomada da economia. Os empresários estão quebrando a cabeça sem conseguir repor contingente e a escassez de mão de obra está reduzindo produção nas indústrias, fechando caixas em lojas de departamentos mesmo em horas de maior movimento, reduzindo clientela, modificando o sistema de transportes. Do total de vagas abertas até julho, cerca de 11 milhões não foram preenchidas. Nunca antes havia sido registrado algo assim. Em setembro esse número melhorou levemente, mas ainda eram 10,4 milhões de vagas disponíveis.
Hoje existem cerca de 75 desempregados para cada 100 postos de trabalho não ocupados. E a imensa maioria dos que estão fora não aceitam entrar com as condições que são oferecidas. O contrato social relativo ao trabalho passou a ser nivelado não mais conforme o interesse das empresas e os empregados ganharam força para reivindicar melhores salários e condições ambientais que sejam mais favoráveis. Esse inesperado empoderamento trouxe consigo também uma mobilização sindical como há muito não se via.
A morte de familiares e amigos pesou em muitas decisões, assim como a reclusão necessária e percepção da finitude de tudo. E a renúncia não ocorre apenas entre profissionais liberais e trabalhadores mais bem pagos, atingindo também as categorias de menor remuneração. As pessoas querem flexibilização para cuidar de filhos e idosos; se indispõem contra abusos evidentes que as grandes corporações sempre praticaram; e se recusam a “hipotecar suas vidas”. Se Trump ainda estivesse no poder iria vociferar, dizendo ser coisa de comunistas. Mas o principal ganho e desejo de todos, segundo aquelas pesquisas que citei antes, tem sido citado com a palavra “tempo”.
É isso que as pessoas desejam. Tempo para viver e se relacionar; tempo para ser gasto em algo que não seja medido em números de produção e desempenho, mas em bem-estar. Um salutar abalo sísmico que o capitalismo não esperava. E que, infelizmente, ainda não ocorre de forma igual por aqui, devido às diferenças gritantes que existem entre os dois países. Em estrutura, recursos e governo. Mas, quem sabe um dia não se importe de lá isso de bom. Porque maus exemplos eles sempre nos mandaram sem problema algum.
20.12.2021

No bônus de hoje, Yrahn Barreto e Chico César cantam Tempo de Viver. A produção artística é de Zeca Baleiro.