Um excelente curta-metragem de animação feito na Polônia, em 2009, conta a história de um jovem poeta – não há alusão direta a ser ele de fato um, mas consta na sinopse – que se apaixona. Ou seja, parte de algo completamente óbvio. Qual poeta não se apaixona? A paixão e a poesia são gêmeas siamesas. Mas a história não tem nada de simples. Começando pelo “pequeno detalhe” das pessoas da cidade não terem cabeça, exceto o protagonista em questão. Entretanto, essa “deficiência” parece ser apenas metafórica, apesar de vermos todas elas realmente desprovidas de qualquer coisa acima dos ombros. Afirmo isso porque nenhuma deixa de cumprir seus afazeres do dia a dia. Ou seja, agem como se enxergassem e ouvissem normalmente, mesmo sem olhos e ouvidos.

Danny Boy é o título do curta, sendo Danny o nome do garoto que é “anormal” por ter cabeça. Ele consegue enxergar o que acontece ao seu redor e isso, por paradoxal que possa parecer, o deixa amargurado. E quando tromba na rua com uma das pessoas sem cabeça tudo parece piorar. Isso porque é uma mulher, pela qual ele se apaixona, mas que não quer ficar com ele justamente por viverem situações tão diferentes. Ao constatar, ela se assusta e foge. Ele, um não alienado, não consegue ser aceito em função disso: por ver a realidade com uma nitidez como os demais não podem nem imaginar.

A cidade é cega e irracional, mas funciona. A sociedade dos sem cabeça está satisfeita, mesmo sem saber o que é tolerância e humanidade. Os muitos acidentes que a situação propicia, como atropelamentos, são naturalizados: acontecem porque tinham que acontecer, sem chocar ninguém – coisa assim tipo 500 mil mortos numa pandemia ainda longe do fim. Todos convivem, mas ninguém se conhece de fato. Como ninguém vê ninguém, é impossível colocar-se no lugar do outro. Mas, para que serviria isso, essa coisa chamada de “empatia”? A vida segue sem precisar de emoção ou poesia. Danny parece perceber isso tudo, mas o amor que sente é visceral e, por isso mesmo, também sem racionalidade. Então, para ele pode ser literal a expressão “perder a cabeça por alguém”.

Se em Ensaio Sobre a Cegueira o escritor português José Saramago nos mostra o desespero de uma população inteira que vai perdendo a visão e a protagonista é a única que continua vendo e precisa ocultar isso, em Danny Boy o protagonista não quer ser o diferente. Ela precisa, ele não deseja esse sentido essencial, ambos agindo por amor e necessidade. Ela é a última esperança diante do caos que se estabelece; ele só pode encontrar a paz e o amor se for igual aos demais. O desespero dela é a anomalia que atinge a todos; o desespero dele é ser diferente, não tendo a anomalia generalizada.

A história, produzida pela Sapristi Studio, deveria ser uma espécie de comédia romântica, mas vai se tornando tragicômica com o decorrer dos fatos. E posso apostar que não deve ser incomum ela arrancar alguma lágrima dos seus espectadores. Porque tem o desespero da solidão; a tensão causada por encontros e desencontros; e porque fala também de desajustes sociais. São dez minutos reveladores, um tempo mínimo que merece ser dedicado para essas percepções todas, que podem até nos servir de descobertas.

17.06.2021

O bônus de hoje é o link de acesso ao curta apresentado na crônica. A história completa de Danny Boy, dirigida pelo polonês Marek Skrobecki, numa coprodução do seu país com a Suíça.

1 Comentário

  1. Fui jogada no centro do que vivemos hoje, apesar de não fugir das cotidianas e dolorosas notícias. Tens razão, não pude deixar de chorar. Um final emblemático.

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