Na minha infância tinha alguém que cantava para mim uma musiquinha irritante, que nada mais era do que a repetição de duas frases, que só mudavam um detalhe cada vez que pronunciadas. Ela descrevia uma manada infinita de elefantes, cuja única razão de viver era incomodar as pessoas. “Um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam, incomodam muito mais.” Os paquidermes se multiplicavam: viravam três, quatro, cinco, ad infinitum. E conforme cresciam em número, igualmente se repetia o “incomodam”. Era preciso contar nos dedos, para não deixar passar um a mais ou a menos. Não sei qual foi o recorde da minha tolerância, quantos deles deixei que desfilassem esse prazer absurdo de tirar os outros do sério. Mas, considerando a pouca idade, acho que não fui muito longe.

Na realidade são os homens que sempre incomodaram os elefantes. Esse animal o que tem de majestoso, de grande, tem de pacífico. Não é nada fácil tirar um deles do sério, mas convém não fazer isso, claro. Basta pensar no tamanho e na força do bicho. Em várias culturas da África e da Ásia eles são venerados como símbolo de sabedoria, poder, prosperidade e dignidade. Entretanto, para seu azar, suas presas são um produto único na natureza, que não pode ser reproduzido de modo artificial. O marfim, especialmente por sua cor e textura, pela qualidade sem igual para a feitura de entalhes e produção de objetos de luxo, faz com que milhares sejam mortos apenas para a sua retirada. Assim, passou a ser raro o animal morrer de velhice. O abate absurdo e indiscriminado, feito por caçadores ilegais, colocou em risco a própria sobrevivência da espécie. Pior é que quanto mais eles morriam e morrem, mais raro e caro se torna o produto, realimentando a ambição sempre descabida dos homens.

As enormes presas brancas vão sendo transformadas em esculturas e outros objetos religiosos ou de decoração, em amuletos, na maioria das vezes vendidos no mercado negro, a preço de ouro. Os animais não se reproduzem no mesmo ritmo. Um elefante atinge maturidade sexual e reprodutiva apenas com uns 20 anos de idade. A sua gravidez dura 22 meses e os filhotes dependem do leite de suas mães por um longo período de tempo, o que dificulta uma nova gestação. Por isso o número das mortes violentas supera o dos nascimentos e reposição daqueles indivíduos perdidos. E a brutalidade dos caçadores é tal que eles chegam a extrair dos abatidos até mesmo a parte da presa que ainda não emergiu, não se limitando a serrar a parte aparente.

Além desse problema, que felizmente vem sendo combatido por ONGs e alguns governos, muitos elefantes sofreram maus tratos por longo tempo em circos. A comovente história de Dumbo, primeiro em desenho animado e mais recentemente (2019) em um belo filme dos Estúdios Disney, está longe de ser apenas ficção. Então, o que resta para eles é a vida em zoológico e em algumas reservas, que precisam ser sempre vigiadas para que se evitem as visitas indesejadas e definitivas.

Minha filha, ainda na pré-escola, foi apresentada a outra “canção animal”. Mas essa tinha como protagonista um inseto que, apesar de nada amado pelas pessoas, não causava nenhum mal a ninguém na letra. Vivia era atormentado pelo desejo de subir e descer uma maldita parede, sendo sempre atrapalhado pela chuva. Era uma aranha, que teria feito melhor se ficasse quieta na sua teia. “A dona aranha subiu pela parede/ Veio a chuva forte e a derrubou/ Já passou a chuva, o sol já vem surgindo/ E a dona aranha continua a subir/ Ela é teimosa e desobediente /Sobe, sobe, sobe e nunca está contente”. Pelo menos essa passa uma ideia de persistência, se bem que de inutilidade também. A Bibiana gostava tanto que era uma das músicas que pedia para se cantar na hora dela dormir. Muitas vezes quem se dispunha a fazer isso dormia antes do que ela, recebendo um suave protesto e o pedido de recomeço. Acho que se fossem somados os metros de cada noite, o bichinho poderia ter chegado com folgas ao cume do Himalaia.

17.03.2021

Dumbo, o elefante amado por crianças e adultos de todo o mundo

Considerando que o texto de hoje cita duas canções infantis, o bônus musical está oferecendo uma terceira. Aquarela, escrita por Toquinho e Vinícius de Moraes, em 1983, sendo aqui cantada pelo primeiro, em seu clip original, é uma verdadeira obra-prima.

2 Comentários

  1. Hoje com o coração apertado, não poderia deixar de comentar. Parabenizar meu amigo Solon por abordar esse tema. Confesso que poucas vezes ou quase nunca paramos para pensar sobre esse lado triste dos grandes, simpaticos e vulneráveis elefantes. Lamentável saber que muitos animais que habitam esse planeta, jamais terão proteção! Abraços meu amigo!

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