FALTA ÁGUA, SOBRA COCA-COLA

A reportagem foi publicada na edição da segunda-feira 22 de março, no New York Times, o maior e mais influente jornal dos EUA. Em uma cidade mexicana não há água suficiente para atender toda a população, mas sobra o refrigerante produzido pela engarrafadora lá existente. O município em questão está localizado no sudeste do país, numa região montanhosa, com belas paisagens, algumas nascentes e muita chuva. Entretanto, a empresa de saneamento local, que foi privatizada, não está fazendo os investimentos necessários para a correta captação, tratamento e distribuição da água potável. Não há reservatórios apropriados e boa parte das pessoas sequer tem encanamento até suas casas, e aqueles que o possuem recebem o precioso líquido dia sim, dia não.

San Cristóbal oferece aos seus cidadãos a alternativa de caminhões pipa, que vez por outra circulam pelos bairros. Assim, quem pode pagar o valor adicional cobrado enche suas caixas d’água. Por outro lado, a fábrica pertencente à Femsa, que é uma gigante que atua no setor de bebidas e alimentos – ela detém a exclusividade para engarrafar e vender Coca-Cola em todo o território mexicano e em boa parte da América Latina –, assegurou por contrato acesso a 300 mil galões diários de água. A empresa teve o ex-presidente do México, Vicente Fox, que liderou o país entre 2000 e 2006, como seu maior executivo. E algum tempo atrás comprou operações também em São Paulo e Minas Gerais, no Brasil, além das Filipinas.

A consequência da escassez de um produto e da abundância de outro é que o refrigerante custa menos do que a água. O que provocou uma situação extrema e preocupante: hoje o consumo de Coca-Cola é de dois litros dia per capita, o que está levando a população a enfrentar um vertiginoso crescimento nos casos de diabetes, além de um verdadeiro surto de obesidade. Isso está causando problemas sérios para o serviço de saúde pública, onerando o sistema de atendimento. Essa foi uma das consequências não pensadas, quando da privatização.

No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite (PSDB) obteve vitória na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa, também essa semana, com a aprovação de parecer que desobriga o governo de realizar plebiscito para obter concordância do povo para a venda de estatais. Ele não quer correr o risco de enfrentar a opinião pública, antes de vender três empresas, com a maior brevidade possível. Entre elas está a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan). As outras duas são o Banrisul e a Procergs.  Importante ressaltar que as duas primeiras são superavitárias, ou sejam dão lucro; e que a terceira é estratégica em função do volume de informações que detém. A venda da Corsan, se vier a ocorrer, irá na contramão do que tem acontecido no mundo todo, nas duas últimas décadas. Nesse período, nada menos do que 884 serviços foram reestatizados, depois do fracasso de suas privatizações, 83% desse total desde 2011. Isso está acontecendo em especial na Europa, em países como a França e a Alemanha, mas não apenas naquele continente.

Sendo privatizada, a certeza inicial é de que haverá reajuste nas contas hoje cobradas. E existe o temor de que os compradores não continuem com programas como a tarifa social, que assegura abastecimento subsidiado para famílias carentes. Outro fator de preocupação está no fato de que foram trabalhos realizados pela Corsan que permitiram a instalação de comitês de gerenciamento de nossas bacias hidrográficas, com planejamento, propostas de uso racional e proteção dos mananciais. Isso tudo terá sua continuidade ameaçada. Convêm lembrar que no nosso subsolo está localizado o Aquífero Guarani, provavelmente o maior reservatório de água doce existente no mundo. E que, não por acaso, a Coca-Cola vem comprando todas as empresas que pode, autorizadas a realizar exploração e venda de água mineral, localizadas no Cone Sul – Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai e os três estados do sul do Brasil: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Um aquífero nada mais é do que um grande reservatório natural de água localizado sob a superfície, sendo a alternativa de abastecimento futuro de toda a humanidade. A água ainda valerá mais do que o petróleo.

A Corsan foi criada em 1965, com o objetivo primordial de assegurar o abastecimento de água e o escoamento de esgotos para a população. Atualmente atua em 317 municípios gaúchos, atendendo cerca de sete milhões de usuários, ou dois terços da população do Estado. Ela é tão importante e tem tamanho potencial ainda de crescimento, que não faltarão interessados na sua aquisição. Entretanto, o valor que será recebido cairá na vala comum para o pagamento de dívidas e para o subsídio e manutenção da máquina pública, não tendo uma vida longa. Além disso, a maior parte dos servidores atuais, que têm sua estabilidade assegurada, terminarão sendo remanejados para outras estatais, continuando na folha de pagamentos do RS. Ou seja, haverá herança de despesas, sem que continue existindo receita. Deste modo, podem acreditar: se alguém sair ganhando com isso, não seremos nós, a população. Convém ficarmos atentos!

27.03.2021

No bônus de hoje, o músico Sanráh apresenta o clip de Água.