Uma pessoa amiga postou no Facebook a informação e eu fui checar. Infelizmente, era verdade. Dias atrás uma senhora de cerca de 70 anos foi encontrada morta na sua residência, na Rua Auxiliadora, em Porto Alegre. Viúva e sem filhos, um sobrinho estranhou o longo tempo sem notícias e foi até sua casa. Foi preciso arrombar, uma vez que ela não atendia e os sinais de abandono eram grandes. A perícia estima que estivesse morta há uns 20 meses. Isso mesmo: quase dois anos e as pessoas não deram pela falta dela. Nem familiares, nem vizinhos, nem mesmo o guarda particular que faz segurança na rua. Talvez ela fosse uma das que não pagassem pelo serviço – raramente há unanimidade na adesão –, ou seria ainda mais estranho ele ficar todo esse tempo sem receber o pagamento e nem sequer bater à porta. Mas esse é o detalhe que menos importa, que menos chama a atenção. O que me estarrece, mas nem surpreende mais, é o fato de que estamos todos ficando cada vez mais distantes uns dos outros e aceitando isso como sendo normal.

Mesmo quando empilhados em edifícios, em boa parte das vezes sequer fazemos ideia de quem está a uma parede de distância. Atualmente, dividir proximidade não é mais conviver. É mais fácil importar um produto da China, porque se faz pela internet, do que tomar café com um vizinho, que seria algo presencial. Nosso estilo de vida conduz para um tipo de solidão que se estabelece até quando se está acompanhado. Mas o outro tipo, o clássico isolamento, também cresce. Nunca como agora tantas pessoas moraram sozinhas, no máximo com a companhia de algum animal de estimação. Ou vendo a vida pela televisão e pelo celular. E não me refiro à solitude, que é um isolamento voluntário e distinto, pois não associado a sofrimento. Falo da solidão involuntária e que se revela como um dos males do século. Temos acesso a tudo, menos aos corações dos outros. Para muitos de nós, os abraços já eram impossibilidade antes do distanciamento social imposto pela pandemia.

Vinícius de Moraes e Toquinho fizeram juntos mais de cem composições, ao longo de 11 anos de profícua parceria musical – foram 25 álbuns e mais de mil apresentações. Há algumas obras primas, entre as quais Samba da Volta, Como é Duro Trabalhar e Canto e Contraponto. Mas a canção Um Homem Chamado Alfredo ganhou um outro tipo de destaque, que foi ser um lamento. Ela narra situação semelhante ao que aconteceu com essa senhora na capital gaúcha. A solidão como absoluta ausência de relação. Não apenas a falta de companhia, mas também de uma simples interlocução, uma troca de mensagens, um telefonema, uma manifestação de afeto ou sequer preocupação. A solidão como invisibilidade, como desimportância, como uma simbólica inexistência.

Onde foi que nós erramos? A pergunta cabe, porque sem dúvida alguma há uma falha gritante e repetitiva. O ser humano é um ser social. Ou ao menos deveria ser. O que nos ensinam é que não sobrevivemos sem o outro. Ao menos biologicamente isso é verdade e começa lá no nascimento, uma vez que um recém-nascido tem tamanha fragilidade que não duraria quase nada sem a proteção dos pais. Somos diferentes de muitos animais, que atingem autonomia praticamente no momento em que obrem os olhos. Mas dos pontos de vista sociológico e psicológico isso também é assim, também há ou deveria haver essa dependência mútua. E esse sintoma, de afastamento doentio uns dos outros, fez com que algo que soa absurdo virasse realidade no Reino Unido: criaram um Ministério da Solidão. A decisão foi tomada quando constataram que a longevidade de seus cidadãos começara a cair. Cresciam os índices de mortalidade prematura, justo entre os que não tinham mais ninguém consigo. Uma espécie de “Síndrome da Solidão”, uma doença social que se alastra entre todos mas atinge com mais facilidade os idosos.

Os solitários de mais idade não raras vezes são como órfãos de filhos e netos vivos, mas distantes. Seja pela geografia, pela condição financeira ou pelo abandono afetivo, não estão nem juntos nem por perto. O velho já não produz e consome mais em remédios do que deveria. E vai vendo seus amigos sumirem aos poucos, afastados ou mortos. A depressão encurta a vida. O Alfredo da música não era ninguém. Não tinha rosto, não tinha história, não tinha sequer sobrenome. Era mais um, numa estatística semelhante a dos mortos agora pela Covid 19. Esta senhora porto-alegrense também. Acho que devemos inúteis pedidos de desculpas a ambos.

22.07.2020

O bônus de hoje é a música de Toquinho e Vinícius, Um Homem Chamado Alfredo. Ela sintetiza a triste situação da vida moderna, onde até se convive, mas não se conhece as pessoas.

4 Comentários

  1. O Peso da Solidão é uma postagem triste, tocante que escancara um problema tão sério.
    Parabéns!

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