Existem muitas vozes fazendo carreira na música brasileira pelas beiradas. São conhecidas, mas o destaque é muito menor do que o merecido, pela qualidade do produto que oferecem. A mídia se repete nos espaços que oferta e parece ter poucos olhos para enxergar esse pessoal que está aí presente, potente e pedindo passagem. Eles gravam, mas o público ainda não tem gravado seus nomes na memória. Ficam abaixo dos que têm o apelo do marketing, estruturas comerciais muito maiores e o afago de quem pode lhes dar visibilidade. E este imerecido semianonimato parece ainda maior quando são vozes que representam a negritude desse nosso país, ávido em esquecer suas origens.
Hoje refiro aqui dois talentos, entre tantos que podem ser incluídos nesse grupo. Melvin Santhana traz uma sonoridade impregnada da ancestralidade africana, como fundo para a aplicação de letras urbanas, periféricas, paulistanas. Suas canções são crítica social sem ranço. Apontam o problema sem ser denúncia rasa. A voz de Luedji Luna também se levanta contra o preconceito racial, mas ainda pelo empoderamento feminino, em especial da mulher negra. Ela é feminista e assume com orgulho a africanidade tatuada no Brasil, especialmente nesta nossa parte exposta chamada Bahia, de onde ela vem. Expressa essas posturas no canto, mas também na vestimenta, nos costumes, no orgulho.
Melvin foi vocalista, guitarrista e ainda produtor musical da banda Os Opalas. E traz na sua formação forte influência de uma miscelânea formada por soul, groove, jazz, reggae e hip-hop. Mas, acima de tudo, usa como cimento para colar tudo isso um imenso amor pela cidade de São Paulo e uma visão afetiva de sua periferia. No álbum Abre Alas, seus primeiro na carreira solo, por exemplo, as letras evidenciam essa percepção sobre as lutas dos afrodescendentes, que é moldada por herança yorubá-nagô. Tudo é muito urbano e muito visual.
Ver um clip de Luedji é uma experiência que traz cor e cheiro, tudo junto e dançante. Nas suas músicas, mescla ritmos afro-brasileiros com jazz, blues e MPB. Mesmo morando em São Paulo desde 2016, seu som e sua presença trazem consigo os bairros Cabula e Brotas, da sua Salvador amada, nos quais nasceu e cresceu conhecendo a necessária luta política. Nisso foi muito bem orientada pela mãe economista e pelo pai historiador e músico – ele integrava o grupo Raciocínio Lento, que marcou presença por lá –, ambos militantes do movimento negro.
Melvin integra também a Boogie Naipe, projeto do rapper Mano Brown (Racionais Mc’s), que foi indicado para o Grammy Latino 2017. Atuante socialmente, muito do que faz tem destinação de recursos para atendimento de carentes, como a distribuição de marmitas veganas. E, além da música, mantêm diálogo aberto com expressões do teatro e do cinema: faz parte da peça-show Farinha com Açúcar… Ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, do Coletivo Negro; e da série Axogun, da Aurora Filmes. Agora em junho estará lançando o EP – Extended Play, um disco mais longo do que seria um single e pequeno demais para ser um long play, usando expressões antigas – Cor e Tom. Com mais de 20 anos de carreira, antes do voo solo acompanhou nomes como Sandra de Sá, Jair Rodrigues, Negra Li, Wilson Simoninha e Tony Tornardo.
Na terceira década da vida, Luedji segue ainda amadurecendo, assim como sua arte. Mas já é uma das afirmações que confirmam a eterna renovação daquele que sempre foi um dos panoramas musicais mais importantes e criativos do nosso país. Afinal, vem da terra que já nos deu Carlinhos Brown, Caetano Veloso, Raul Seixas, Gilberto Gil, Margareth Menezes, Moraes Moreira, Gal Costa, Dorival Caymmi, João Gilberto e tantos outros que têm em comum pelo menos duas coisas: talento e baianidade. Uma terra que não se referencia apenas com estes nomes consagrados. Felizmente para nós, ela não seguiu a carreira do Direito, cursado na Universidade do Estado da Bahia. Preferiu a outra, iniciada ainda aos 17 anos, com suas composições e a presença informal em bares da sonora cidade natal.
08.06.2020
Tem bônus em dobro na publicação de hoje: um clip de cada um dos cantores destacados no texto. De Melvin Santhana, Nascimento; e de Luedji Luna, Banho de Folhas.
Ótimo texto e o brinde na verdade é um presentão oferecido pelo autor.
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Obrigado Jane! Realmente, nesses tempos bicudos, boa música é um alento para nossos corações. Abraço!
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Muito bom meu amigo. Como sempre um texto refinado, recheado de elementos e evidências fáticas. E agora com brindes que enchem a alma. Parabéns!
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Boa música sempre faz bem à alma. Obrigado pela leitura e pelo comentário, Éber. Abraço!
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Que bacana! Tanta coisa linda para ouvir….
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Há mesmo muita qualidade na música brasileira, além do que mais é divulgado pelos meios tradicionais. Abraço!
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Música de qualidade com letras maravilhosas, eu diria que este é o som que qualifica a verdadeira MPB. Além do vocal, instrumentos marcantes! Estilo musical que faz muita falta em nossas emissoras de rádio, que hoje estão poluídas, repetindo diariamente as mesmas porcarias. Confesso que eu não conhecia, mas gostei muito!!! Se musicalmente as emissoras do Brasil estão cada vez mais pobres, por outro lado temos a internet, que nos possibilita chegarmos a estas pérolas. E ainda temos blogs, como este, que nos ajudam a encontrar muitas coisas boas, que geralmente estão ocultas por falta de apoio e incentivo!!! Valeu Solon, belíssimo texto/assunto! Abraços…
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Talvez estejam mesmo faltando bons programas nas emissoras de rádio. Como um que fazia meu amigo radialista Rogério Kruger. Abraço!
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