Acredito ser bastante plausível que sequer os católicos saibam disso, mas o Inferno foi uma criação gradual e mal explicada, que ocorreu dentro da própria Igreja. Ela foi acontecendo aos poucos, durante cerca de mil anos, com o deus da bondade adquirindo, de certa forma, uma face sádica ao permitir que suas criaturas sofram “sanções” que seriam não apenas duríssimas como também poderiam ser eternas. Talvez por essa razão os evangélicos, que no fundo são dissidências do catolicismo e nada mais, sempre se referem aos seus seguidores como “tementes a Deus”. E quem de nós não temeria, ao se dar conta do enorme risco que a existência com a qual ele nos agraciou possa, no final das contas, não ser um prêmio e sim um castigo?
Apenas dois séculos passados da presença e pregação de Cristo entre nós, começaram a ocorrer interpretações de algo que não constava nas escrituras. E progressivamente foi introduzido um modo de enxergar os textos que se baseava no que afirmavam os “pensadores” da época, os que foram chamados de “Pais da Igreja”, e não na história inicial. Tudo teria começado com Clemente de Alexandria e com Orígenes. Ambos acreditavam que, depois da morte, as almas enfrentariam um sentimento forte de arrependimento pelos pecados praticados em vida. Deste modo, teriam um sofrimento moral e transitório. Isso porque a bondade divina se encarregaria de lhes assegurar a salvação, as retirando desse inferno espiritual que seria suas consciências pesadas.
Depois tivemos Santo Ambrósio e Gregório de Nissa, com ambos sendo quase que a repetição dos primeiros, em termos de análise. O que durou pouco, porque antes do quinto século da era cristã surgiram dois que introduziram o elemento fogo nesta danação: João Crisóstomo e São Jerônimo. O sadismo de ambos ampliou também o leque dos que teriam que enfrentar tal infortúnio, além de aumentá-lo. Isso porque todos os que fossem pagãos, não tendo recebido o batismo, seriam incluídos nessa lista dolorosa dos que jamais seriam perdoados. Ou seja, Deus teria permissão de ser bondoso apenas com aqueles a quem os padres recomendassem. O que, sinceramente, me parece uma inacreditável inversão na hierarquia.
Isso tudo, portanto, foi uma mentira que se tornou oficial. Talvez a primeira grande fake news da história da civilização ocidental. Tanta gente passou a repetir a crença que o inferno se materializou – algo como o ambiente político da história recente no Brasil. O poder da palavra, sem dúvida. Como se não bastasse, nos chega então Santo Agostinho, que reafirma a natureza física deste local maldito e doloroso, além de o eternizar. Até as crianças que por desventura perderam suas vidas antes do batismo ganham lá sua cadeira cativa. Mas, como assim, se seguiram puras até pela falta de tempo de vida para terem cometido quaisquer pecados?
A igreja oficial, portanto, não apenas se divorciou do Evangelho como deu a ele nova acepção, contribuindo para a mudança de rumos do cristianismo. Tudo isso a partir da criação do inferno. A ignorância e o medo passaram a ser companhia fiel dos fiéis. Basta ver o que então ocorreu na Idade Média, com a Santa Inquisição. Os fogos saíram do perímetro do inferno e tomaram fogueiras nas quais os hereges eram queimados, em suposto ritual de purificação – o nome real deveria ser sadismo, mesmo que o Marquês de Sade só tenha vindo ao mundo quase no final deste período obscuro da história. Ele nasceu em 1740; a Idade Média foi entre 476 e 1453; e a Santa Inquisição se estendeu entre o início da IM até 1789.
Voltando no tempo, com sua autoridade o Papa Dâmaso I incluiu uma identidade duríssima na descrição do que seria o inferno: local de suplícios eternos. Suplicio é sofrimento, mas também pode ser visto como tortura. Um território que seres desprezíveis, ao estilo de Brilhante Ustra, conheceram profundamente. Agora, a partir de São Tomás de Aquino, os teólogos não conseguiram ampliar as penalidades todas que o território dominado pelo Diabo destinaria a cada um de nós, pecadores mortais. Talvez porque ficou difícil ser mais criativo. Mas foram além ao criarem uma chave da porta de acesso ao território das sombras. Que lhes cumpria cuidar, lógico. Assim, classificaram os pecados em duas categorias: os mortais e os veniais. Para os primeiros não haveria nem desculpa, nem salvação. Mas os veniais, esses poderiam ser algo de negociação. Criava-se a partir de então a possibilidade de escape via confissão ou pela aquisição de indulgências. O inferno passou a ser lugar de pobres que, não podendo pagar, estavam de fato ferrados. Ou seja, sofriam durante alguns anos na vida física e depois, durante toda a eternidade, na vida espiritual.
Interessante é que versões mais “modernas” do cristianismo, que agregaram inclusive alguma preocupação social e não negaram a ciência, não tiveram como escapar dessa visão. Ela de tal forma se incorporou ao inconsciente coletivo que não se conseguiu ainda ver a realidade segundo aquilo que realmente foi pregado por Jesus. O que, aliás, outros grandes líderes espirituais também disseram e muitos filósofos contemporâneos repetem: se existe de fato um inferno, é bastante plausível acreditar que ele seja aqui, onde estamos agora.
12.02.2023

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