Em 2013 eu dava aulas em uma faculdade, no curso de Jornalismo. Vivi ao lado dos meus alunos a experiência da grande revolta popular que nasceu em Porto Alegre e se espalhou pelo Brasil. A motivação inicial era estar a administração pública permitindo um reajuste de 20 centavos no preço das passagens dos ônibus urbanos da capital gaúcha. Foi um levante que surgiu praticamente do nada e ganhou as ruas. Conforme as manifestações iam tendo mais força, também as reivindicações mudavam. E tanto e de tal forma que lá pelas tantas boa parte dos que delas participavam não tinham mais sequer certeza sobre o que os estava motivando. Entraram na pauta questões como a violência policial; a falta de investimentos em serviços públicos, como educação e saúde; a hegemonia dos partidos políticos que pouco ligavam para as necessidades reais da população; a conivência da classe empresarial; as falhas da democracia participativa e muito mais.
Fosse o que fosse, era legítimo no entender de todos. Além disso, de pacíficas elas foram se tornando mais violentas, não pela ação da maioria, que permanecia fiel às causas defendidas. Entretanto, um grupo bem menor começou a se infiltrar, com seus componentes escondendo os rostos em máscaras, promovendo alguns atos de vandalismo. Mais de 500 cidades em todo o país foram tendo manifestações repetidas e crescentes. A imprensa, principalmente, passou a ser um dos alvos prediletos, acusada de ser parcial nas coberturas, assim como de agir sempre como um dos braços opressores do sistema. O que, temos que admitir, tinha e tem uma boa dose de verdade. Lembro perfeitamente de uma noite – os grupos se reuniam nos finais de tarde, em geral no Centro Histórico, de onde partiam – na qual um grande contingente de pessoas saiu em direção ao prédio da RBS, na Avenida Ipiranga. Integrantes do Batalhão de Choque da Brigada Militar se concentraram todos ao redor daquele edifício, sem qualquer outra preocupação, como proteger também pequenos comerciantes que foram sendo lesados no caminho.
Esses atos todos determinaram uma linha divisória. A partir deles teve início a desconstrução de conquistas democráticas que haviam sido fruto de uma longa luta. Mas, assim como surgiram, os levantes foram se acalmando, até cessar. Bem recentemente se descobriu que as manifestações na verdade não foram assim tão espontâneas. Teriam recebido um “empurrãozinho” de experimento manipulador também utilizado na chamada “Primavera Árabe”, uma série de explosões sociais ocorridas em diversos países no Oriente Médio, de forma quase simultânea, entre dezembro de 2010 e dezembro de 2012. Por aqui foi o primeiro teste do uso político das redes sociais, com disparos massivos e orquestrados, feitos com o auxílio de algoritmos que determinavam o que dizer, para quem, de que modo e em que momento, para atingir o resultado pretendido. Desde então esse recurso foi sendo aprimorado, de tal forma que se tornou decisivo em algumas eleições presidenciais ao redor do mundo. Como a de Trump, nos EUA, e a de Bolsonaro, no Brasil.
Para quem de modo inocente acredita que isso não passa de mais uma “teoria da conspiração”, vamos tomar a mesma Porto Alegre atual como exemplo. A passagem do transporte público aqui continua sendo a mais cara do Brasil, em comparação com as demais capitais. No ano passado o prefeito Sebastião Melo, do MDB, com a promessa de baixar o seu custo, conseguiu permissão legislativa para privatizar a Carris e também para autorizar a retirada gradual dos cobradores. Logo após, no entanto, reforçou que a queda ocorreria, “mas não agora”. Na sequência, passou a trabalhar numa proposta de adquirir ônibus novos para as empresas privadas, com recursos públicos – que dizia não ter para manter a Carris, fundada por Dom Pedro II, em atividade –, também com a promessa de redução nas passagens. Dias atrás, informou que a tarifa irá em breve passar dos atuais R$ 4,70 para prováveis R$ 6,00 (as empresas querem R$ 6,50). Uma diferença gritantemente maior que os vinte centavos anteriores. Naquela época subiria 6,6%; agora deve ocorrer um aumento de 27,65%. E sem quaisquer indícios de reação popular.
Não mudou a violência policial; crimes de ódio aumentaram; educação e saúde continuam precárias; grandes empresários e a classe política seguem vivendo em realidade paralela; a democracia é desrespeitada todos os dias; as instituições estão sendo degradadas; a justiça permanece inconfiável; e o país está sendo destruído, em seu meio ambiente, sua história, sua posição de destaque no mundo. Empregos estão sendo perdidos; o salário encolhe; voltamos ao mapa da fome; a ciência é desconsiderada; grupos de milicianos crescem em influência e armamento; corrupção e impunidade nunca foram tão grandes. Com tudo isso não se vê ninguém nas ruas. Talvez porque os algoritmos sigam nas mãos erradas.
27.01.2022

O bônus de hoje é o áudio de Manifestação, canção de Russo Passapusso, Xuxa Levy e Rincon Sapiência, com letra de Carlos Rennó. Participam da gravação do clipe Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Péricles, Criolo, Rael, Rico Dalasam, Paulo Miklos, Luedji Luna, Siba, Paulinho Moska, Xenia França, Ellen Oleria, BNegão, Filipe Catto, Chico César, Pretinho da Serrinha, As Baías, Pedro Luis, Marcelino Freire, Marcelo Jeneci, Ana Canãs, Márcia Castro, Larissa Luz, Ludmilla, Camila Pitanga, Letícia Sabatella, Roberta Estrela D’Alva e Siba Veloso, além dos autores.
Como o assunto de hoje partiu do tema rebeldia, deixo a sugestão de leitura de duas biografias de talentosos “rebeldes” da música brasileira: Raul Seixas e Belchior. Ambas foram escritas por Jotabê Medeiros. Para adquirir um ou ambos os livros, basta clicar sobre suas capas acima. O blog age às claras e informa: poderá ser comissionado, se o acesso para compra for via esses links.
- Como Raulzito, o garoto de classe média de Salvador que era fã de Elvis Presley, se transformou em Raul Seixas, um dos maiores ícones da cultura pop brasileira? Como o jovem sonhador, depois de “passar fome por dois anos na cidade maravilhosa”, conquistou as gravadoras e o grande público? E como o criador de “Maluco Beleza” e “Sociedade Alternativa”, responsável por versos que se confundem com a contracultura dos anos 1970, foi derrotado pelas drogas e pelo alcoolismo na década seguinte, mas sem deixar de produzir hits inesquecíveis?
- A morte de Belchior, em abril de 2017, foi uma comoção nacional. Dez anos antes, o artista desaparecera. Foi a partir do mistério desse sumiço que o autor deu início à pesquisa para um livro sobre o autor de clássicos como “Velha Roupa Colorida”, “Alucinação” e “Como Nossos Pais”. Realizou dezenas de entrevistas com parceiros musicais, amigos, familiares e produtores de seus discos. Apenas um rapaz latino-americano traz períodos pouco conhecidos da vida de Belchior, como os anos em que passou em um mosteiro, na adolescência. Foi ali que o artista travou seu primeiro contato com a literatura e a filosofia e habituou-se ao silêncio e à introspecção que seriam características marcantes até o fim da vida.
Muito bom texto! Obrigado.
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Excelente recuperação da história das manifestações no país desde 2013. Muito triste a comprovação de quanto podem ser manipuladas algumas manifestações sociais. Daí a importância deste texto.
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