QUERERES. OU NÃO

A letra de O Quereres é extremamente bela. Mas o que nela é de fato fácil, está em constatar sua complexidade. O que nos leva a dizer que seu entendimento é múltiplo, sendo aberto e hermético ao mesmo tempo. Coisas de Caetano Veloso, lógico. A começar por uma dúvida básica sobre ser ela de fato uma canção ou uma poesia musicada. O que, aqui entre nós, não faz a mínima diferença. Nela o querer é transformado em objeto, materializado, sendo e se opondo ao mesmo tempo. Uma obra de arte, enfim. Daquelas que ninguém distraído é capaz de entender.

A música foi gravada ainda em 1984, sendo a sétima faixa do álbum Velô. O texto, seu contexto e a intertextualidade são uma constante que está escancarada. Na verdade, tão exposta quanto oculta. Há um desenrolar envolvente, de sonoridade que encanta. Mas quem ouve, o tempo todo está sendo desafiado pelo menos a buscar um dos tantos sentidos possíveis, que para si venha a ter lógica. O que não é difícil assim quando se visualiza tudo pela antítese constante, pela adequação em contrapartida da resistência.

Tudo na letra são ideias se opondo. O interlocutor e o eu lírico sempre em posições contrárias. A ameaça da violência com o revólver; a paz do coqueiro que ocupa praias tranquilas. O dinheiro que compra e corrompe; a paixão que é gratuita e avassaladora. O desejo que se impõe contra o descanso. O mesmo desejo não sendo em determinado momento correspondido. O sonho nas alturas e a rasteira realidade. A espiritualidade, no salto da alma.

Eu queria querer-te e amar o amor/ Construir-nos dulcíssima prisão/ Encontrar a mais justa adequação/ Tudo métrica e rima e nunca dor/ Mas a vida é real e de viés/ E vê só que cilada o amor me armou/ Eu te quero e não queres como sou/ Não te quero e não queres como és.” Aqui está o conflito da necessidade (ou não) de nos adaptarmos uns aos outros, na vida comum real ou especulada. O amor ideal e integrado tendo que, em algum momento, deparar-se com todas as frustrações da vida cotidiana. Mesmo que o “eu” busque o perfeito, a relação igual e absoluta, irá se deparar com a percepção de que isso não existe. Ou que, se pudesse existir, dependeria o tempo todo do outro e, portanto, não estaria naturalmente ao seu alcance. Então, a vida a dois seria uma armadilha na qual cada um de nós voluntariamente se deixaria cair, com a esperança de ser essa a doce prisão citada. Anseio versus realidade. A dimensão do sonho trazida ao nosso alcance, mas sem que se tenha controle sobre ele.

Há um permanente movimento do Eu e do Outro se encontrando e se desencontrando, entre desejos e negações. Indecisão e contraste entre os envolvidos nesse relacionamento, que é amoroso e dá medo. Que dá medo porque é essencialmente humano. E que é humano porque fundado no desejo. Talvez Caetano nunca tenha sido tão Caetano quanto foi dessa vez.

05.01.2022

Caetano Veloso

O bônus musical de hoje é óbvio: a música O Quereres, de Caetano Veloso.