Ela nasceu capixaba e circunstancialmente se tornou carioca, muito carioca, uma vez que foi para o Rio de Janeiro ainda com um ano de idade. Seu corpo delicado parecia não ter conexão com a coragem, que fazia jus ao seu sobrenome. Falo de Nara Leão, tida como Musa da Bossa Nova e que, na realidade, era muito mais do que isso. Hoje ela estaria completando 80 anos, não tivesse falecido tão precocemente, aos 47, vitimada por um câncer. Mas, antes de contar um pouco mais da sua história, dou um exemplo da audácia que citei acima. Em plena ditadura militar, quando um general a ameaçou de prisão, dizendo que ela tinha que parar “com essa história de protesto, de carcará e de não mudar de opinião”, ela respondeu na lata: “esse Exército não serve para nada”. Tudo registrado, pois fez isso em uma entrevista. Pego de surpresa com a reação dela, o fardado nada fez.
Nara tinha berço e isso talvez também assustasse a autoridade. Morava de frente para o mar, em Copacabana, e sempre é muito mais fácil intimidar o povo da periferia, com sua população pobre e sem voz. Mas a cantora, mesmo tendo essa “proteção social” evidente, nunca deixou de denunciar a miséria nem a opressão dos poderosos. No apartamento dos seus pais era comum que a nata da Bossa Nova se reunisse. Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Johnny Alf, Edu Lobo, Sérgio Mendes, João Donato e outros eram habitués. Naquele endereço muita coisa boa foi composta.
Fruto daquele meio, admiradora de João Gilberto e Tom Jobim, quando lança seu primeiro álbum mescla esses parceiros da Bossa Nova com sambistas. Para surpresa de muitos, nele aparecem Nelson Cavaquinho, Cartola, Zé Keti e Elton Medeiros. E no segundo, um verdadeiro clássico (Opinião de Nara), ela abandona qualquer possibilidade de ser chamada de ingênua, pelo preconceito reinante, assumindo de vez as questões sociais. Eclética, porém muito simples, de cabelo curto, sem qualquer exagero visual nas roupas e nos acessórios e geralmente abraçada ao seu violão. Essa era Nara em casa ou na rua.
De sua aproximação com Chico Buarque veio a vitória no Festival de Música Popular da Record, em 1966. A canção A Banda, que ela interpretou, terminou empatada no primeiro lugar com Disparada, de Geraldo Vandré, defendida por Jair Rodrigues. Namorou com o Tropicalismo; gravou compositores nordestinos; se debruçou sobre o jazz; e até mesmo Roberto e Erasmo Carlos fizeram parte do seu repertório, para desespero de seus companheiros de primeira hora, na Bossa Nova. Gravou também Fagner, Dominguinhos, Sidnei Miller, Sueli Costa e Jards Macalé, entre tantos outros nomes, sendo conhecidos ou novatos.
Sem dizer-se feminista, ela sempre contribuiu muito na luta das mulheres. Ainda em 1959, quando Norma Bengell foi proibida pelos padres de cantar num show que estava marcado para a PUC-RJ, ela liderou reação e levou o evento para a UFRJ, iniciando de certa forma o clássico “mexeu com uma, mexeu com todas”. E quando foi ameaçada de prisão, como contei antes, mereceu um poema de ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade. Em 1º de abril de 1968, data em que o golpe militar completava quatro anos, logo após o estudante Édson Luís ter sido brutalmente assassinado, publicou o texto “É preciso não cantar”, na coluna que Nelson Mota mantinha no jornal Última Hora.
Um documentário em cinco capítulos sobre a vida dela está disponível no Globoplay. “O Canto Livre de Nara Leão” tem direção de Renato Terra e mistura a biografia da cantora com um pouco de cultura popular, história do Brasil e resistência feminina. A edição é impecável, trazendo imagens e áudios de arquivo, depoimentos e entrevistas. Nos permite conhecer muito mais da menina culta, que foi casada com dois cineastas, o moçambicano Ruy Guerra e o brasileiro Cacá Diegues –, tendo com o segundo um casal de filhos, Isabel e Francisco. Terra dedica cada episódio a uma das muitas facetas e controvérsias de Nara. Mas, acima de tudo, enriquece a visão que se tinha dela e com certeza irá contribuir para o surgimento de novos e tardios fãs.
19.01.2022

No bônus musical de hoje, Nara Leão com Chega de Saudade, de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim.
Clicando na imagem acima você pode adquirir Manhã de Liberdade, álbum que Nara Leão lançou em 1966. São doze canções, começando com a premiada A Banda. Outras faixas em destaque são Funeral de Um Lavrador, de João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque, e Faz Escuro Mas eu Canto, de Mansueto Menezes e do poeta Thiago de Mello, que faleceu essa semana. Todos os registros são de imensa qualidade.
Outra possibilidade interessante é o livro de Ruy Castro, Chega de Saudade. Nele há uma cuidadosa reconstituição da Bossa Nova e da vida boêmia e cultural carioca da época. O que inclui Nara Leão, é lógico. Trata-se de uma narrativa que se lê como um romance baseado em fatos reais, repleta de paixões e traições, amores e desamores, lances cômicos e trágicos. Tem minha recomendação. Assim como no álbum, basta clicar na imagem acima. Se você fizer compras através de um desses links, o blog será comissionado.
Grande mulher Nara Leão, deixou saudades.❤️
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Sem dúvida alguma.
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Tua crônica é um documento histórico precioso.
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Obrigado, Maria Rosa!
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